segunda-feira, 28 de março de 2016

  • 8Porções
  • 30Minutos
  • 4
4 pp
Ingredientes
  • Δ 4 xíc. de molho de tomate, sem gordura, pronto
  • ½ xíc. de manjericão fresco, picado
  • 8 ovos
  • 1 xíc. de queijo parmesão, ralado, light
  • ½ c.c. de pimenta-vermelha em flocos
Ovos Assados ao Molho de Tomate
Modo de preparo
1- Preaqueça o forno a 180 °C.
2- Em uma travessa ou frigideira toda de metal, despeje o molho de tomate e salpique o manjericão por cima.
3- Abra 8 círculos no molho utilizando o fundo de um ramekin pequeno. Quebre 1 ovo em cada orifício e salpique o queijo parmesão e os flocos de pimenta por cima.
4- Leve ao forno e asse até que as claras estejam completamente cozidas, as gemas um pouco moles e o queijo derretido, o que dura cerca de 18 minutos. Use uma colher funda para servir cada ovo em uma tigela individual e complete com o molho. Rende aproximadamente 1 ovo e ⅓ de xíc. de molho por porção.
Este prato é uma excelente opção para um brunch. Fica ótimo acompanhado de salada verde mista ou de pão sírio integral.

segunda-feira, 21 de março de 2016

http://estaleiroeditora.blogaliza.org/files/2011/08/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf

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Cárcere de Roma, 20 de novembro de 1926 Minha queridíssima Iulca, lembras umha das tuas últimas cartas? (era ao menos a última carta que recebim e lim). Escrevias que nós os dous somos ainda demasiado jovens para podermos aspirar a ver crescer juntos os nossos filhos. É preciso que tu, agora, lembres isto intensamente, que tu penses nisto intensamente cada vez que pensas em mim e que me associes aos nossos filhos. Estou certo de que serás umha mae forte e corajosa, como sempre o foche. Terás de sê-lo ainda mais do que no passado, para que as crianças cresçam bem e sejam completamente dignas de ti. Pensei muito, muito nestes dias. Procurei imaginar como será toda a vossa vida no futuro, porque vou ficar, com certeza, sem notícias vossas durante muito tempo; e voltei pensar no passado, tirando dele razons para ter umha força e umha fé infinitas. Eu som e serei forte; quero-te e quero chegar a ver as nossas criaturinhas. Minha querida, nom quereria incomodar-te de nengumha maneira; estou um pouco canso, porque durmo pouquíssimo e por isso nom consigo escrever tudo o quanto gostaria e como gostaria. Quero fazer que sintas bem forte todo o meu amor e a minha confiança. Abraça toda a gente da tua casa; abraço-te a ti e mae às crianças com a maior tenrura. Antonio • 46 (Carta 2) Roma, 20 de novembro de 1926 Queridíssima mamae: Tenho andado a pensar muito em ti nestes dias. Tenho pensado nos novos desgostos que vou causar-te, à tua idade, e depois de todos os sofrimentos que tés passado. É preciso que sejas forte, apesar de todo, como eu som forte, e que me perdoes com toda a tenrura do teu imenso amor e da tua bondade. Saber-te forte e paciente no sofrimento será um motivo para que eu também seja forte: pensa-o, e quando me escrevas ao endereço que che mandarei, tranquiliza-me. Eu estou tranquilo e sereno. Moralmente estava preparado para tudo. Tentarei superar também fisicamente as dificuldades que podam esperar-me e restar em equilíbrio. Conheces o meu carácter e sabes que há sempre umha ponta de bom humor no seu fundo: isso vai-me ajudar a viver. Nom che tinha escrito ainda que me nasceu um outro filho: chama-se Giuliano, e escrevem-me que é forte e cresce bem. No entanto, nestas últimas semanas Delio tivo a escarlatina, embora nom fosse grave; contudo, nom conheço neste momento o seu estado de saúde: sei que superou a fase crítica e que se está a repor. Nom deves preocupar-te muito polos teus netinhos: sua mae é mui forte e com o seu trabalho educará-os mui bem. Queridíssima mae: nom tenho mais forças para continuar. Escrevim outras cartas, pensei em muitas cousas e cansou-me um pouco nom dormir. Tranquiliza toda a gente: di-lhes que nom devem ter vergonha de mim e que devem ser superiores à estreita e mesquinha moralidade do rural. Di para o Carlo que ele, nomeadamente agora, tem o dever de pensar em vós, de ser sério e trabalhador. Grazietta e Teresina devem ser 47 fortes e manter-se serenas, nomeadamente Teresina, se estiver esperando mais um filho, como me escreveche. Também meu pai deve ser forte. Queridíssimos todos, neste momento tenho umha mágoa no coraçom, principalmente quando penso que nom fum sempre afetuoso e bom convosco, como deveria ter sido e como merecíades. Querede-me sempre, seja como for, e lembrade-me. Um beijo para todos. E para ti, querida mae, um abraço e um feixe de beijos. P.S. — Um abraço para Paolo1 , e que queira sempre bem e seja sempre bom com a sua querida Teresina. E um beijo para Edmea e Franco. Nino • (Carta 3) Ustica, 9 de dezembro de 1926 Queridíssima Tatiana, cheguei a Ustica2 o 7 e o dia 8 recebim a tua carta do 3. Heiche descrever noutras cartas todas as impressons da minha viagem, na medida em que as lembranças e as diferentes emo- çons se vaiam ordenando no cérebro e me tenha recuperado 1 Paolo Paulesu, marido de Teresina. Edmea e Franco, nomeados mais adiante, som sobrinhos de G.; a primeira, filha do irmao Gennaro, o segundo, filho da irmá Teresina. Grazietta e Carlo som outros dous irmaos de G. Grazietta é a segunda filha por ordem de nascimento, Carlo o último. 2 Lugar de desterro para presos comuns e políticos. Gramsci deixara o cárcere de Regina Coeli no dia 25 de novembro de 1926. 48 do cansaço e das insónias. Para além das circunstáncias especiais em que a viagem se tem desenvolvido (como poderás compreender, nom é mui confortável, mesmo para um homem forte, passar horas e horas num comboio-correio e num barco com as algemas nos pulsos e sujeito por umha cadeia que te amarra aos pulsos dos companheiros de viagem); a viagem foi interessantíssima e cheia de diferentes detalhes, dos shakespearianos até os cómicos: nom sei se serei capaz, por exemplo, de reconstruir umha cena nocturna na passagem por Nápoles, num local imenso, mui rico em exemplares zoológicos fantasmagóricos; acho que só pode igualá-la a cena do coveiro no Hamlet. O trecho mais difícil da viagem foi a travessia de Palermo até Ustica; tentámos quatro vezes a viagem e três vezes tivemos de voltar ao porto de Palermo, pois o barco nom resistia o temporal. Contudo, sabes que engordei durante este mês? Eu próprio estou surpreendido de me sentir tam bem e de ter tanta fome: acho que em quinze dias, depois de ter repousado e dormido suficientemente, estarei completamente livre de qualquer rasto da hemicránia e iniciarei um período totalmente novo da minha existência molecular. A minha impressom de Ustica é ótima de todos os pontos de vista. A ilha tem oito quilómetros e alberga umha populaçom aproximada de 1.300 habitantes, dos quais 600 som presos comuns, isto é, delinquentes várias vezes reincidentes. A populaçom é mui amável. Ainda nom estamos todos instalados: dormim duas noites num grande quarto comum junto com os outros amigos; hoje encontro-me já num quartinho de hotel e se calhar amanhá ou depois de amanhá irei morar para umha casinha que estám a mobilar para nós: somos tratados por todos com grande correçom. Estamos completamente separados dos presos comuns, cuja vida nom saberia descrever-che em poucas palavras: lem- 49 bras o conto de Kipling intitulado «A estranha cavalgada», no volume francês O homem que queria ser rei? Véu-me de repente à memória e tam vivamente que me parecia estar a vivê- lo. Por enquanto somos quinze amigos. A nossa vida é bem tranquila: estamos ocupados em explorar a ilha, o qual me permite dar passeios bastante compridos, por volta de nove ou dez quilómetros, com paisagens mui amenas e com vistas maravilhosas da marinha, do abrente e do sol-pôr: cada dous dias vem o barco, que traz notícias, jornais e novos amigos, entre os quais o homem de Ortensia, a quem tivem o grande prazer de encontrar3 . Ustica é bem mais jeitosa do que o que mostram os cartons postais que che hei mandar: é umha pequena aldeia de tipo muçulmano, pitoresca e cheia de cor. Nom podes imaginar o contente que estou de vagabundear de um cantinho para o outro da ilha e de respirar o ar do mar, depois deste mês de transferências de um cárcere para o outro, mas especialmente após os dezasseis dias de Regina Coeli, decorridos no isolamento mais absoluto. Penso que me vou converter no campeom ustiquês de lançamento de pedra à distáncia, porque já vencim a todos os amigos. Escrevo-che um bocado aos saltos, assim como me vem, porque ainda estou um pouco canso. Queridíssima Tatiana, nom podes imaginar a minha emoçom quando no Regina Coeli vim a tua caligrafia na primeira garrafa de café recebida e lim o nome de Marietta4 ; volvim ser, literalmente, umha 3 Amadeo Bordiga (1889-1970). Foi o primeiro líder do Partido Comunista de Itália, desde 1921 até 1924, quando Gramsci o sucedeu como Secretário Geral. Bordiga, estando na oposiçom do partido, foi detido e enviado a Ustica no fim de 1926, ficando ali até outubro de 1927, quando o transferírom para Ponza, outra ilha para desterrados, até o fim de 1929. Em 1930 foi expulso do P.C.I. 4 Marietta Bucciareli, amiga de Tatiana Schucht, quem frequëntava regularmente a casa de Gramsci 50 criança. Olha, neste tempo, sabendo com certeza que as minhas cartas, segundo as disposiçons carcerárias, iam ser lidas, nasceu-me umha espécie de pudor: nom me atrevo a escrever sobre certos sentimentos e se trato de os atenuar para me adequar à situaçom, parece-me que me comporto como um sacristám. Por isso vou limitar-me a escrever-che algumhas notícias sobre a minha estadia em R.C. [Regina Coeli] com respeito a tudo quanto me perguntes. Recebim o casaco de lá, que me foi extremamente útil, assim como as meias, etc. Teria passado muito frio sem elas, porque saim com o abrigo mais leve e, ao termos saído mui cedo de manhá, quando tentávamos a travessia Palermo-Ustica estava mui frio. Recebim os pratinhos que me vira obrigado a deixar com mágoa em Roma, pois devia meter toda a minha bagagem na bolsa (que me prestou serviços inestimáveis) e estava seguro de que os partiria. Nom recebim a candeia, nem o chocolate nem a bica, que estám proibidos: vim-nos assinalados na lista, mas com a advertência de que nom podiam passar; de maneira que nom tivem a xícara para o café, ainda que me decidim a fazer um serviço de meia dúzia com cascas de ovo, montadas extraordinariamente sobre um pedestal de miolo de pam. Vejo que estás impressionada polo facto de as comidas serem quase sempre frias: nom te preocupes, porque comim sempre, depois dos primeiros dias, no mínimo, o duplo do que comera no mesom, e nom sentim a menor moléstia; todavia, soubem que todos os amigos sofrêrom moléstias e tivérom de abusar dos purgantes. Vou-me convencendo de que som mais forte do que nunca pudeche imaginar, porque, a diferença de todos, saim-me bem, com um simples cansaço. Asseguro-te que, com a exceçom de umhas pouquíssimas horas de obscuridade, umha noite em que nos tirárom a luz das celas, estivem sempre mui contente; o trasgo que me leva a ver sempre o lado 51 cómico e caricatural em todas as cousas estivo sempre ativo em mim e conservou-me alegre apesar de tudo. Lim sempre, ou quase, revistas ilustradas e jornais desportivos e estava a refazer umha biblioteca. Aqui estabelecim este programa: 1º estar bom para estar sempre melhor de saúde, 2º estudar a língua alemá e russa com método e continuidade; 3º estudar economia e história. Entre nós havemos fazer ginástica racional, etc., etc. Cumpre que nestes primeiros dias, até acabar de me instalar, che encomende uns trabalhos. Gostaria de ter umha bolsa de viagem, mas que seja segura, com fechadura ou com cadeado: é melhor que qualquer mala ou cofre, ante a possibilidade, que nom excluo, de posteriores movimentos meus polas ilhas ou para terra firme. Depois, precisaria todas essas pequenas cousas, como a gillette com láminas de recámbio, a tesourinha para as unhas, a lima, etc., etc., que som sempre necessárias e que nom estám à venda; queria algum tubo de aspirina, por se os refachos me fam sangrar os dentes. Com a roupa, o abrigo e a roupa branca que resta, acho darás feito. Envia-me depressa, se puderes, a gramática alemá e umha gramática russa; o dicionário pequeno de alemám-italiano e italiano-alemám e algum livro (Max e Moritz5 — e a história da literatura italiana de Vossler, se a deres encontrado entre os livros). Envia-me aquele volume grande de artigos e estudos sobre o risorgimento italiano que se intitula: Storia politica del secolo XIX e um livro intitulado: R. Ciasca, La formazione del programma dell’unità nazionale, ou algo parecido. Além disso, vê tu mesma e decide o que a ti che pareça. Por esta vez, escreve tu a Giulia: nom consigo vencer esse sentido do pudor de que che falava há pouco: alegrou-me muito conhecer as boas 5 Conto para crianças escrita por Wilhelm Busch (1865). 52 notícias sobre Delio e Giulio; espero as fotografias. O endere- ço usado por ti é corretíssimo, como viche; aqui os correios funcionam de umha maneira simples: som eu a perguntar no balcom pola posta-restante, e em Ustica só há umha oficina postal. A propósito dos telegramas enviados, o de Roma, que anunciava a minha partida, sabia com certeza que iria chegar com muita demora, mas queria dar a conhecer a notícia e nom excluía que pudesse ser útil para umha conversa, caso o receptor tivesse sabido que era possível vir até 11 da noite. De cinco que partírom unicamente Molinelli, que viajou sempre comigo, recebeu a visita da mulher às 11 justas: os outros nada. Queridíssima Tatiana, se nom che escrevim antes, nom deves crer nem por um instante que te esquecesse nem que nom pensasse em ti; a tua expressom é exata, porque em cada cousa que recebia, via em destaque o sinal das tuas queridas maos; era mais do que um cumprimento, mais do que umha carícia afetuosa: teria gostado de ter o endereço da Marietta; se calhar, escrevia também para a Nilde6 , o que achas? Lembrará-me? Gostará dos meus cumprimentos? Escrever e receber cartas converteu-se para mim num dos momentos mais intensos da vida. Queridíssima Tatiana, escrevo-che de umha maneira um pouco confusa. Creio que hoje, 10, o barco nom vai dar chegado, porque durante toda a noite houvo um vento fortíssimo que nom me deixou dormir, apesar da suavidade da cama e dos coxins, aos quais já me desabituara; é um vento que penetra por todas as fendas do terraço, pola janela e polas portas, com assobios e sons de trompetes mui pitorescos, mas mui 6 Leonilde Perilli, companheira de estudos de Eugenia Schucht na Academia de Belas Artes de Roma, e amiga dos Schucht. Hospedou a Tatiana na sua casa durante uns anos. 53 irritantes. Escreve para a Giulia e di-lhe que estou bem de verdade, de todos os pontos de vista, e que a minha permanência aqui, que por outra parte nom creio seja tam comprida como decidiu o decreto, há de tirar do meu corpo todos os velhos achaques: talvez um período de repouso absoluto seja incluso umha necessidade para mim. Abraço-te com tenrura, queridíssima, porque abraçandote abraço a todos aqueles a quem eu quero. Se Nilde aprecia os meus cumprimentos, manda-me o seu endereço. Antonio • (Carta 4) Ustica, 19 XII 1926 Queridíssima Tania: Escrevim-che um postal o 18 para avisar de que tinha recebido a tua registada do 14: previamente, tinha escrito para ti umha comprida carta ao endereço da senhora Passarge, quem cha deveu ter entregado o 11 ou o 12. Resumo os principais acontecimentos de todo este tempo. Detido o 8 às 10:30, e conduzido imediatamente ao cárcere, partim de Roma de manhá, mui cedo, o 25 de novembro. A permanência em Regina Coeli foi o período mais difícil do arresto: 16 dias de isolamento absoluto na cela, com umha disciplina mui rigorosa. Pudem ter um quarto pagando, mas só nos últimos dias. Decorrim os primeiros três dias numha cela mui luminosa de dia e iluminada de noite; no entanto, a cama estava mui suja; os lençóis estavam usados; formiguejavam nela os insectos mais variados; nom me foi possível ter algo 54 para ler, nem sequer a «Gazzetta dello Sport», porque ainda nom a reservei: comim a sopa do cárcere, que estava bem boa. Passei depois para umha nova cela, mais obscura de dia e sem iluminaçom à noite, a diferença da outra, esta tinha sido desinfectada com chama de gasolina e a cama tinha a roupa limpa. Comecei a comprar algumha cousa na cantina do cárcere: as candeias de estearina para a noite, o leite para a manhá, umha sopa com caldo de carne e um pedaço de carne cozida, queijo, vinho, maçás, cigarros, jornais e revistas ilustradas. Passei da cela comum para a de pagamento sem prévio aviso, polo que estivem um dia sem comer, dado que o cárcere passa a comida somente aos ocupantes das celas comuns, enquanto os dos quartos de pagamento devem «buscar-se as favas» (expressom carcerária) por si próprios. Em meu caso, o quarto de pagamento consistiu em que somassem ao xergom de crina um colchom de lá e um coxim ídem e que a cela estivesse mobilada com umha bacia, umha jarra e umha cadeira. Deveria ter também ao meu dispor um talho, um bengaleiro e um pequeno roupeiro, mas a administraçom está falta de «material de intendência» (outra expressom carcerária): tivem também luz elétrica, mas sem interruptor; de maneira que durante toda a noite me revirava para proteger os olhos da luz. A vida transcorria assim: às 7 da manhá diana e limpeza do quarto; contra as nove, o leite, que com o tempo se converteu em café com leite, quando comecei a receber a comida da cantina. O café chegava polo geral ainda morno; o leite, polo contrário, estava sempre frio, mas eu fazia entom umha abundante sopa. De nove até o meio-dia tocava a hora do passeio: umha hora, de nove até dez, ou de dez até onze, ou de onze até doze; faziam-nos sair separados, com a proibiçom de falarmos e de saudarmos quem quer que fosse, e íamos para um pátio circular dividido em rádios por muros de separaçom altíssimos, 55 com umha grade que dava para o resto do pátio. Éramos vigiados por umha sentinela erguida sobre um terracinho que dominava os setores radiais e por umha sentinela que passeava diante das grades; o pátio estava encaixado entre muros altíssimos e estava dominado, num dos lados, pola chaminé baixa de um pequeno obradoiro interno; por vezes o ar era fumo; umha vez tivemos de permanecer por volta de meia hora baixo a tormenta. Contra o meio-dia chegava o jantar; frequentemente, a sopa estava ainda morna, mas o resto estava sempre frio. Às 3 havia a visita à cela, para a revisom das barras da grade; a visita repetia-se às dez da noite e às três da manhá. Dormia um bocado entre estas duas últimas visitas: umha vez me acordava a visita das três já nom conseguia adormecer; porém, era obrigado ficar na cama entre 7½ da tarde e o amanhecer. A distracçom proporcionavam-na as diferentes vozes e os fragmentos das conversas que por vezes conseguia ouvir das celas do lado ou de em frente. Nunca incorrim em nengum castigo: Maffi7 , no entanto, estivo três dias a pam e água numha cela de castigo. Na verdade, nunca sentim mal-estar nengum: embora nunca desse acabado toda a comida, comim sempre com um apetite maior que o do mesom. Tinha apenas umha colher de madeira; nem garfo, nem copo. Umha jarra e umha jarrinha de barro para a água e para o vinho; um prato grande de barro para a sopa e outra como bacia, antes da concessom do quarto de pagamento. A 19 de novembro foi-me comunicada a disposiçom que me condenava a 5 anos de desterro nas colónias, sem mais explicaçom. Nos dias sucessivos chegárom-me rumores de que partiria para Somália. Só na tarde do 24, e indiretamente, soubem que 7 Fabrizio Maffi (1868-1955), médico, militante socialista e mais tarde comunista, deputado. 56 cumpriria a pena de desterro numha ilha italiana: o destino exato só me foi comunicado de maneira oficial em Palermo; podia ir para Ustica, mas também para Favignana, para Pantelleria ou para Lampedusa; foram excluídas as Tremiti, porque de outro jeito teria viajado de Caserta a Foggia. Partim de Roma na manhá do 25, com o primeiro comboio dos correios para Nápoles, aonde cheguei por volta de umha da tarde; viajei na companhia de Molinelli, Ferrari, Volpi e Picelli, também eles detidos o dia 8. Ferrari, porém, foi apartado em Caserta para as Tremiti: digo «apartado», porque mesmo no vagom permanecíamos juntos e amarrados a umha longa cadeia. De Roma em diante fiquei sempre em companhia, o qual produziu umha notável mudança no estado de ánimo: era possível conversar e rir, embora estivéssemos amarrados à cadeia e com os dous pulsos apertados polas algemas e se tivesse que comer e fumar com tais adornos. Porém, a gente conseguia acender os fósforos, conseguia comer e beber; os pulsos inchá- rom um pouco, mas tinha-se a noçom do perfeita que é a maquina humana, quando pode adaptar-se a qualquer circunstáncia, por anti-natural que ela for. No limite das disposiçons regulamentares, os guardas da escolta tratárom-nos com grande correçom e cortesia. Ficamos em Nápoles duas noites, no cárcere de Il Carmine, sempre juntos, e voltamos sair por mar na tarde do 27, com um mar mui calmo. Em Palermo tivemos um quartinho mui limpo e arejado, com umha vista belíssima do monte Pellegrino; encontrámos outros amigos destinados às ilhas, o deputado maximalista Conca, de Verona e o advogado Angeloni, republicano de Perugia. Acrescentárom-se outros a seguir, entre os quais Maffi, que fora destinado a Pantelleria, e Bordiga, destinado a Ustica. Deveria ter saído de Palermo o dia 2; porém, só conseguim partir o dia 7; três tentativas de travessia fracassárom polo mar bravo. Esta foi a pior 57 parte da transferência. Pensa: diana às quatro da manhá, as formalidades para a entrega do dinheiro e das diferentes cousas deixadas em depósito, algemas e cadeia, veículo celular até o porto, baixada à lancha para chegar ao barco, subida da escada para subir a bordo, subida de umha escada para subir à ponte, descida de umha outra escada para ir à seçom de terceira classe; todo isso tendo os pulsos amarrados e estando amarrado com umha cadeia a outros três. Às sete o barco parte, viaja durante umha hora e meia, dançando e mexendo-se como um golfinho, depois volta para trás, porque o capitám admite que é impossível continuar a travessia. Repete-se no sentido contrário a série das escadas, etc., volta-se para o cárcere, somos novamente registados e voltamos para a cela; entretanto, já é meio dia, nom deu para pedir o jantar; até 5 nom se come; na manhá a seguir ainda nom se comerá. Isto tudo por quatro vezes com o intervalo de um dia. A Ustica chegaram já quatro amigos: Conca, o ex deputado de Perugia Sbaraglini, e dous de Aquila. Durante algumhas noites dormimos num sala: agora estamos já instalados numha casa ao nosso dispor, para seis: eu, Bordiga, o Conca, os Sbaraglini e os dous de Aquila. A casa compom-se de um quarto no rês-do-chao onde dormem dous: no rês-do-chao está também a cozinha, a sanita, e um quartinho que usamos como sala comum de toilette. No primeiro andar, dormimos quatro em dous quartos, três num quarto bastante grande e um no quartinho do meio; um amplo terraço está por cima do quarto maior e domina a cala. Pagamos 100 liras por mês pola casa, e duas liras por dia pola cama, a roupa branca da cama e os demais objetos domésticos (duas liras por cabeça). Os primeiros dias gastamos muito nas comidas; nom menos de 20 liras por dia. Agora gastamos 10 liras por dia da mazzetta polo jantar e a ceia; estamos a organizar umha cantina comum, que nos permitirá, se 58 calhar, viver com as 10 liras por dia que nos adjudicou o governo; somos já trinta desterrados e ainda há de chegar algum mais. As nossas obrigas som variadas e complexas; a mais salientável é a de nom sairmos da casa antes do amanhecer e a de voltar para a casa às 8 da tarde; nom podemos ir além de determinados limites que, em linhas gerais estám representados polo perímetro habitado. No entanto, conseguimos licenças que nos permitem passear por todo o território da ilha, com a obriga de voltar dentro dos limites às 5 da tarde. A populaçom em conjunto é de perto de 1.600 habitantes, dos quais 600 som forçados, isto é, delinquentes comuns que já cumprírom outras condenas. A populaçom indígena compom-se de sicilianos, mui amáveis e hospitaleiros; podemos relacionar-nos com a populaçom. Os presos estám submetidos a um regime mui restritivo; a grande maioria, dado o pequeno tamanho da ilha, nom pode ter nengum ocupaçom e tem que viver coas 4 liras diárias que lhes adjudica o governo. Podes imaginar o que acontece: a mazzetta (é o termo que se utiliza para indicar a pensom do governo) gasta-se principalmente em vinho; as comidas reduzem-se a um pouco de massa com ervas e a um pouco de pam; a desnutriçom leva ao alcoolismo mais depravado num prazo mui breve. Estes presos som encerrados em celas especiais às cinco da tarde e estám juntos toda a noite (entre cinco da tarde e sete da manhá), fechados desde fora: jogam às cartas, em ocasions perdem a mazzetta de bastantes dias e desta maneira vêem-se prisioneiros num círculo infernal que dura até o infinito. Deste ponto de vista, é um autêntico pecado que se nos proiba ter contatos com seres reduzidos a umha vida tam excecional: acho poderiam fazer-se observaçons de tipo psicológico e de folclore com um caráter único. Todo aquilo quanto de elementar sobrevive no 59 homem moderno, volta à tona irremediavelmente: estas moléculas pulverizadas agrupam-se novamente conforme princí- pios que se correspondem com aquilo que de essencial existe ainda nos estratos populares mais profundos. Existem quatro divisons fundamentais: os setentrionais, os centrais, os meridionais (com Sicília) e os sardos. Os sardos vivem absolutamente afastados do resto. Os setentrionais possuem umha certa solidariedade entre eles, mas nengumha organizaçom, polo que parece; orgulham-se porque, mesmo sendo ladrons, carteiristas, caloteiros, nom derramárom nunca sangue. Entre os do Centro, os romanos som os melhor organizados; nem sequer denunciam aos confidentes os das outras regions, guardando para si a desconfiança. Os meridionais estám mui organizados, se devemos julgar polo que se di, mas entre eles há subdivisons: o Estado napolitano, o Estado pulhês e o Estado siciliano. Para o siciliano, o motivo de orgulho consiste, nom em ter roubado, mas em ter derramado sangue. Todas estas informaçons obtivem-nas de um preso que se encontrava no cárcere de Palermo cumprindo condena por um crime que cometera durante o período de desterro e que se orgulhava de ter causado conforme um plano previamente estabelecido, umha ferida com umha profundidade de dez centímetros (medida, di ele) ao carcereiro que o mal-tratara: planificara dez centímetros e fôrom dez centímetros, nem um milímetro a mais. Esta era a obra mestra da qual se orgulhava em extremo. Acredita que a referência ao romance de Kipling nom era exagero, ao menos considerando as impressons do primeiro dia. A minha situaçom financeira durante este tempo foi ótima. Fum detido com 680 liras no bolso; em Roma vim somadas ao meu favor outras 50 liras. Os gastos incrementárom-se de maneira alarmante só depois da saída de Roma. Em Palermo, principalmente, esfolárom-nos de maneira literal: o ho- 60 teleiro marcou com 30 liras um pacote com umha porçom de macarrons, ½ litro de vinho, ¼ de frango e fruta que serviam para duas comidas. Cheguei a Ustica com 250 liras que me chegárom para os primeiros 10 dias; depois tivem 100 liras de mazzetta (10 liras por dia), as tuas 500 liras e 374 liras pola imunidade parlamentar, para os dias compreendidos entre 1 e 9 de novembro. Portanto, estivem bem durante bastante tempo, isto é, podo tomar algum café, fumar cigarros e completar o gasto diário para a casa e a comida, que hoje é de 14 liras por dia, mas que diminuirá assim que tenhamos organizada a cantina. É por isso que nom deves preocupar-te por mim: nom quero de nengumha maneira que te sacrifiques pessoalmente por mim: se tiveres a hipótese, oferece a tua ajuda a Giulia, que com certeza necessitará mais cousas do que eu. Na anterior ocasiom nom che escrevim que, recém chegado a Ustica, encontrei umha carta em que se me assegurava que Giulia ia receber as ajudas, e que nom devia preocuparme nesse sentido. Recorrerei a ti para ter algumhas cousas que de outra maneira nom poderia ter: porém, em geral estou decidido a fazer de maneira que poda viver com a mazzetta governamental, já que o considero possível, depois de algum tempo de aclimataçom. Queria-che dizer outra cousa importantíssima: o amigo Sraffa escreveu-me que abriu para mim umha conta corrente ilimitada numha livraria de Milám8 , na qual poderei encarregar jornais, revistas e livros; aliás, ofereceu-me todas a ajuda que quiger. Como vês, podo olhar para o porvir com suficiente serenidade. Se tiver a segurança de que Giulia e as crianças nom vam sofrer qualquer privaçom, 8 A livraria Sperling & Kupfer, da qual G. se serviu sempre nos seguintes anos. 61 estarei realmente tranquilo: querida Tatiana, este é o único pensamento que me atormenta nos últimos tempos, e nom apenas depois do meu arresto; sentia vir esta tormenta, de maneira imprecisa e instintiva e por isso mais tormentosa. Lembras quando me digeche que umha amiga comum aludia à minha superstiçom? Voltei pensar nisso algumha vez, nom para convencer-me mais umha vez de que tinha razom e de que exagerei, nom por superstiçom, mas sim por falta de decisom e por outros escrúpulos que intelectualmente considero de caráter inferior, nom obstante nom fosse nem seja capaz de me libertar deles. De facto, a análise que fazia era exata, mesmo se me parecia impossível umha demonstraçom objetiva e pormenorizada. Olha que escrevim com essa abundáncia que desejavas, escrevendo também sobre cousinhas sem a mais mínima importáncia. Estás contente? Sabes que te quero muito e que lamento muito lembrar algum pequeno episódio em que por um descuido, de algumha maneira, che figem mal. Escreve tu a Giulia também em meu nome; nom tenho vontade de mandar-che os desenhos para Delio: teria que explicá-los e isso desagrada-me enormemente. Aguardo as fotografias. Entre os livros que deves enviar-me inclui os seguintes: —Hauser— Les Grandes puissances, Le prospettive economiche de Mortara para 1926, os dous Berlitz — alemám e russo. Entre os objetos, gostava de um pouco de sabom, um pouco de água de colónia para a barba, umha escova de dentes com o seu vidro de protecçom, um pouco de dentífrico, umhas poucas aspirinas e umha escova para a roupa. Queridíssima Tatiana, abraço-te afetuosamente. Antonio

CARTA 10
21/XII/1926 Queridíssimo amigo9 , recebim a tua carta do 13; no entanto, nom recebim ainda os livros que me anunciavas. Agradeço-che mui cordialmente o oferecimento que me figeche; já escrevim à Livraria Sperling e figem umha encomenda bastante aparatosa, com a certeza de nom ser indiscreto, porque conheço toda a tua amabilidade. Somos em Ustica 30 desterrados: iniciámos já toda umha série de cursos, elementares e de cultura geral, para os diferentes grupos de desterrados; começaremos também umha série de palestras. Bordiga dirige a seçom científica, eu a seçom histó- rico-literária; eis a razom pola qual encomendei determinados livros. Esperemos que desta maneira decorra o tempo sem nos embrutecer e sendo úteis aos outros amigos, representantes de todo o tipo de partidos e de preparaçom cultural. Comigo estám Schiavello e Fiorio10, de Milám; dos maximalistas está também o ex deputado Conca de Milám. Dos unitários está o advogado Sbaraglini, de Perusa e um magnífico tipo de camponês de Molinella. Um republicano de Massa e 6 anarquistas de composiçom moral complexa; o resto comunistas, isto é, a grande maioria. Há 3 ou 4 analfabetas ou quase; o resto tem diversa preparaçom, mas com umha média geral mui baixa. 9 Piero Sraffa (1898-1983), professor de economia em Cambridge. Gramsci conheceu-no em Turim na época da universidade e ali se figérom amigos. Sraffa esforçou-se durante os anos do cárcere por ajudar a Gramsci: mantivo correspondência com Tatiana Schucht, fijo viagens a Italia e mesmo pudo arranjar várias conversas com Gramsci. Conseguiu interessar pola sua sorte a altas personalidades inglesas. 10 Ernesto Schiavello (n. 1899), organizador sindical de Milám, decorreu sete anos entre cárcere e desterro. 63 Porém, todos estám contentes por terem umha escola, que frequentam com grande assiduidade e diligência. A situaçom financeira ainda é boa: aos desterrados damnos 10 liras por dia; a mazzetta dos presos comuns em Ustica é de 4 liras por dia, nas outras ilhas por vezes é mesmo menor, se existirem possibilidades de trabalhar. Nós temos o direito a morar em casas particulares; seis pessoas (eu, Bordiga, Conca, Sbaraglini e dous mais) moramos numha casinha pola qual pagamos 90 liras por mês cada um, com todos os serviços incluídos. Contamos organizar umha cantina, a fim de podermos satisfazer as necessidades de comida e casa com as 10 liras diárias da mazzetta. A comida, naturalmente, é mui pouco variada: nom se encontram ovos, por exemplo, o qual me amola bastante, porque nom podo fazer pratos abundantes ao estilo marinheiro. O regime que devemos seguir consiste em recolher-se em casa às 8 da tarde e nom sair dela antes do amanhecer nem ir além dos limites habitados sem umha licença especial. A ilha é pequena (8 km.) com umha populaçom de 1600 habitantes, dos quais 600, aproximadamente, som presos comuns: existe um único grupo de vivendas. O clima é ótimo e até agora nom estivo frio; apesar disso, os correios chegam sem regularidade, porque o barco que fai a travessia quatro vezes por semana nem sempre pode com o vento e as ondas. Para chegar a Ustica tivem que fazer quatro tentativas de travessia; isso cansou-me mais do que toda a viagem de Roma a Palermo. Contudo, permanecim sempre em ótimas condi- çons de saúde, para grande surpresa dos meus amigos, pois todos tenhem sofrido mais do que eu: imagina que até engordei levemente. Porém, nestes dias, quer polo cansaço atrasado, quer pola comida que nom se condiz com os meus costumes e a minha constituiçom, sinto-me mui débil e esgotado. Mas 64 aguardo afazer-me rapidamente e dar cabo, de vez, de todos os males passados. Escreverei-che amiúde, se quigeres, para me iludir com que me encontro ainda na tua grata companhia. Saudo-te com afeto Antonio • (Carta 6) 2/I/1927 Queridíssimo11, recebim os livros que me anunciavas na penúltima carta e um primeiro pacote dos que encomendara. Tenho portanto bastante para ler durante algum tempo. Agradeço a tua grande amabilidade, mas nom queria abusar. Porém, tem a certeza de que sinceramente me dirigirei a ti sempre que precisar qualquer cousa. Como podes imaginar, aqui nom há muito para comprar; antes polo contrário, por vezes escasseia o que comprar, mesmo se a compra for necessária. A vida decorre sem novidade nem surpresas; a única preocupaçom é a chegada do barco, que nem sempre consegue fazer os quatro trajetos semanais (segunda-feira, quarta-feira, quinta-feira e sábado) com grande pesar para cada um de nós, que aguarda sempre com ánsia a correspondência. Somos já uns sessenta, dos quais 36 som amigos de diferentes lugares; predominam relativamente os romanos. Já começamos a escola, dividida em vários cursos: 1° curso (1º e 2º elementar), 11 Dirige-se a Piero Sraffa. 65 2° curso (3º elementar), 3° curso (4º – 5º elementar), curso complementar, dous cursos de francês (inferior e superior) e um curso de alemám. Os cursos estabelecem-se em relaçom ao nível cultural que se tem nas matérias, que podem ser resumidas num certo conjunto de noçons delimitadas com exatitude (gramática e matemática); nesse sentido, os alunos dos cursos elementares frequentam as aulas de História e Geografia do curso complementar, por exemplo. Em resumo, procuramos conciliar a necessidade de umha ordem escolástica gradual com o facto de os alunos terem, mesmo se nalguns casos semianalfabetas, umha certa instruçom. Os cursos som seguidos com grande diligência e atençom. Graças à escola, que é frequentada também por alguns funcionários e habitantes da ilha, evitamos os perigos da desmoralizaçom, que som mui grandes. Nom poderias imaginar a que condiçons de embrutecimento físico e moral tenhem chegado os presos comuns. Para poder beber venderiam até a camisa; muitos vendêrom os sapatos e o casaco. Um bom número nom dispom já livremente da mazzetta governamental de quatro liras diá- rias, porque foi empenhada aos usurários. A usura é punida, mas nom creio que seja possível evitá-la, porque os próprios presos comuns, que som as suas vítimas, nom denunciam os usurários senom em casos mui excecionais. Paga-se um juro de 3 liras por semana por 10 liras de empréstimo. Os juros arrecadam-se com extrema intransigência, já que os usurários se rodeiam de pequenos grupos de colaboradores, que por um copo de vinho destripariam mesmo os seus bisavós. Os presos comuns, salvo raras exceçons, mostram muito respeito e deferência por nós. A populaçom da ilha é mui educada. De resto, a nossa chegada causou umha mudança radical no lugar e deixará amplas pegadas. Está-se a planificar a instalaçom da luz elétrica, visto que entre os desterrados há técnicos capazes 66 de levar a termo a iniciativa. O relógio do campanário, que estava parado desde há seis messes, foi posto em funcionamento em dous dias: talvez se retome o projeto de construir o cais para a entrada do barco no porto. As nossas relaçons com as autoridades som mui corretas. Queria escrever-che algumhas impressons recolhidas durante a viagem, nomeadamente em Palermo e em Nápoles. Em Palermo fiquei oito dias: tentou-se quatro vezes a travessia, e em três ocasions, após umha hora e tal de navegaçom com o mar revolto, tivemos de voltar atrás. Foi a parte mais desconfortável de toda a viagem, a que mais me cansou. Tinha de acordar às quatro da manhá, ir até o porto com os ferros nos pulsos; sempre amarrados e ligados com umha cadeia, descer numha lancha, subir e descer bastantes escadas no barco, onde permanecíamos amarrados com umha única algema, sofrer o enjôo, quer pola posiçom incómoda (estávamos amarrados, embora com umha única cadeia e unidos aos demais por meio metro de cadeia; era, pois, impossível deitarse) quer porque o pequeníssimo e ligeiro barco abana, mesmo se o mar estiver em calma, para voltar atrás e repetir a manhá seguinte a mesma história. Em Palermo tínhamos um quartinho mui limpo, preparado de propósito para nós (deputados), dado que o cárcere está superlotado e assim se evitava pôr-nos em contato com os detidos da máfia. Durante a viagem fomos sempre tratados com grande correçom e até com cortesia. Muito obrigado por te tomares a moléstia de enviar os ovos. Agora que passárom as festas, encontrarei-nos mui frescos por aqui. Agradecia o leite condensado suíço, se quigeres mandar-mo. Nom saberia que pedir-che, mesmo querendo: aqui falta um pouco de tudo e é difícil conseguir certas cosas; é preciso dar longas voltas. Nom existe um serviço de correios com Palermo. Agradecia-che que me enviasses um pouco de 67 sabom para o asseio e para fazer a barba, e algum medicamento de uso geral, que sempre se pode necessitar, como a aspirina Bayer (aqui a aspirina é umha visom do céu) e tintura de iodo e algum comprimido para a enxaqueca. Garanto-che mais umha vez que che escreverei se for necessário: viche quanto me prestárom os livros? De resto, confesso-te que ainda estou um pouco atordoado, e nom acabei ainda de me orientar por completo em tantas cousas. Escreve-me ami- úde: a correspondência é o que mais se agradece na minha situaçom. Quando leias algum livro interessante como o de Lewinsohn12, envia-mo. Abraço-te fraternalmente Antonio Envia-me um frasquinho de água de Colónia. Fai-me falta un desinfetante para depois de fazer a barba. • (Carta 7) 7/II/1927 Queridíssima Tania: recebim a tua carta do 4 de janeiro, um pacote que continha objetos de asseio e o bolso de viagem, mais um segundo pacote que continha panettoni13 e que deveu chegar com muito atraso. Na verdade, nom podo aceitar o conselho de... encon- 12 Richard Lewinsohn, Histoire de l’inflation. Le deplacement de la richesse en Europe (1914-1925), Payot, Paris, 1926. 13 O panettone é um pastel que se come principalmente no Natal; é um biscoito mole com frutos secos. [N. do T.] 68 trar caprichos. Infelizmente, nas condiçons em que estou obrigado a viver, os caprichos venhem sós: é inacreditável como as pessoas obrigadas por forças externas a viverem de maneira excecional e artificial desenvolvem com particular brio todos os lados negativos do seu caráter, principalmente os intelectuais, ou, melhor dito, essa categoria de intelectuais que em italiano coloquial som chamados de mezze calzette14. Os mais calmos, serenos e medidos som os camponeses; depois venhem os operários, depois os artesaos e para acabar os intelectuais, que sofrem lufadas imprevistas de umha loucura absurda e infantil. Naturalmente, falo dos desterrados políticos, nom dos presos comuns, cuja vida é primitiva e elementar, e cujas paixons alcançam, com rapidez espantosa, o culmen da loucura: num mês verificárom-se entre os presos comuns cinco ou seis crimes de sangue. Nom seguirei, portanto, o teu conselho de ter caprichos. E porém, tés razom: por vezes comporto-me mal sem querer, ofendendo os meus amigos sem sabê-lo. Isso explica-se, creio, porque sempre vivim em soidade, sem família, e tivem que recorrer a estranhos para as minhas necessidades: é por isso que tivem sempre medo de incomodar e de estorvar. Mas nom havia em mim nengumha falta de reconhecimento do teu afeto e da tua bondade. Recorrerei a ti sempre que for necessário, com o compromisso, pola tua parte, de seres extremamente sincera sobre as tuas possibilidades e de nom te procurares problemas inúteis e perigosos. A tinta que me mandache vai mui bem; para além disso, vam bem todas as demais cousas. Recebim as fotografias: Delio tivo muito sucesso e foi mui louvado. Imagina que descobrim ter umha dose de paciência e de 14 Medíocres, de meia-tigela. [N. do T.] 69 fortaleza que nom achava possuir: só Bordiga pode competir comigo. Somos os únicos em todo este período em nom sentir mal-estares de nengumha classe, enquanto os demais, quem mais quem menos, tivo febres gripais e moléstias intestinais, devido à mudança radical dos alimentos e à água, em que nadam de maneira visível exemplares, magníficos pola sua agilidade, da raça dos tritons. Nom comecei até agora nengum trabalho sério, embora tenha já à minha disposiçom umha discreta quantidade de livros; comecei no entanto as aulas de História do curso de cultura geral que organizáramos. Por isso nom deves preocupar-te por enviar rapidamente os livros. Porém, necessito um pouco de dinheiro. Achava ter o suficiente, para três messes no mínimo: tivem de gastar para ajudar a um certo número de desterrados que chegárom sem recursos, e tivem de antecipar dinheiro para as despesas gerais da cantina comunal que vai começar depois de amanhá, día 9. O período das despesas imprevistas já passou: a cantina comunitária permitirá evitarmos as grandes e pequenas despesas a que até agora estávamos obrigados para poder comer. Olha que o digo com sinceridade: fam-me falta umhas 200 liras, e nom tenho mesmo vontade de pedir-lhas a Sraffa, que neste momento se encontra longe da sua casa. Queridíssima Tania, gostava mesmo de saber-te tranquila e sem nengum ataque de melancolia. Porém, deves escreverme igualmente, e confessar-te comigo: as tuas cartas som um grande prazer para mim porque me sinto, com cada umha delas, perto de ti. Sabes que recebim um postal de Giulia com a assinatura autógrafa de Delio? Parece inacreditável: o mundo é sempre mais pequeno do que pensamos. Escreverei-che ainda umha longa carta para o correio da segunda-feira, embora exista a probabilidade de o barco nom chegar na segundafeira. Entrámos no Inverno também em Ustica. Inverno mui 70 suave, porque se pode ir dar umha volta sem chapéu e sem casaco; contudo, chove amiúde e frequentemente sopram refachos mui fortes que agitam o mar e impedem a navegaçom. Mas fora disso, que dias tam magníficos! Nom podes imaginar as tonalidades que chegam a adquirir o mar e o céu nos dias claros. Saúda Giacomo e a mulher. Conhecim o amigo de Valentino15, que é um ótimo rapaz. Um abraço Antonio Envia-me algum número do «Temps» e do «Journal des dé- bats»: podes encontrá-los na banca dos jornais do Palácio das Finanças. Os sapatos que me descreves serám bons para a próxima Primavera, acho. Os que calçava no momento da partida, nom obstante estejam remendados (lembras?) resistem milagrosamente. Manda-me notícias sobre o pequeno limoeiro: cresceu? Qual é a sua altura já? É resistente? Queria escrever-che sobre isto, mas passei por cima, por nom parecer demasiado... infantil. • 15 Valentino Schreider (n. 1903), estudante, comunista, filho do social-revolucionário Isaac Schreider; foi detido em abril de 1927, junto a um grupo de comunistas romanos, sendo condenado a cinco anos de cárcere. 71 (Carta 8) 15/I/1927 Queridíssima Tania, a última carta que me enviache tem a data de 4 de janeiro. Deixache-me onze dias sem notícias tuas. Nas condiçons em que me encontro, é umha cousa que preocupa muito. Acho que é possível acordar as exigências recíprocas, com o compromisso pola tua parte de enviar-me polo menos um postal cada três dias. Eu já comecei a seguir este sistema. Quando nom tenha tema para umha carta —e para mim esse é o caso mais comum—, enviarei-che polo menos um postal, a fim de nom renunciar a nengum serviço postal: a vida decorre aqui monótona, uniforme, sem sobressaltos. Se calhar, devia descrever-che algumha pequena cena da vida da aldeia, se estivesse com suficiente bom humor. Por exemplo, podia descrever-che o arresto de um porco que encontrárom polas corredoiras, livre e sem licença, e que foi conduzido para o cárcere conforme manda o regulamento: o facto divertiu-me enormemente, mas tenho a certeza de que nem tu nem Giulia ides acreditar; talvez acredite Delka16 quando tiver algum ano mais e escuite a história, junto com outras do mesmo tipo (a dos óculos verdes, etc.), igualmente autênticas e dignas de serem acreditadas sem risinhos. Também me divertiu a maneira de arrestar o porco: agarrando-o polas patas traseiras e tirando dele como de um carrinho, enquanto ele berra como um condenado. Nom houvo maneira de conseguir informaçons precisas sobre como se poderia identificar o abuso do pasto e dos caminhos: acho que os vigiantes da higiene conhecem todo o gado miúdo da aldeia. Umha outra particularidade que 16 Diminutivo russo de Delio. 72 nunca mencionei é que nom vim ainda em toda a ilha nengum médio de transporte a exceçom do burro, um magnífico animal, na verdade, de grande estatura e de umha natureza doméstica notável, sinal do bom caráter dos habitantes: na minha aldeia os burros som meio selvagens e mal deixam que se aproximem deles os donos. Ainda mais umha de animais: escutei ontem umha magnífica história sobre cavalos, contada por um árabe aqui desterrado. O árabe falava o italiano de maneira bem estranha e com muitas expressons incompreensíveis: contudo, em geral a anedota estava cheia de cores e de força descritiva. Isto lembra-me, por umha associaçom mui estranha, que soubem que era bastante fácil encontrar o famoso trigo mourisco: uns amigos vénetos dim que é mui comum no Véneto para fazer a polenta. Esgotei assim um certo stok de temas para falar. Aguardo ter-te feito sorrir um bocado: acho que o teu prolongado silêncio deve ser interpretado como umha consequência da melancolia e do cansaço, e que é mesmo preciso fazer-te sorrir. Querida Tania, deves escrever-me, porque só de ti recebo cartas: quando me falta a tua correspondência assim, durante tanto tempo, tenho a impressom de que estou ainda mais isolado, que todas as minhas relaçons com o mundo se rompê- rom. Beijo-te, com afeto Antonio • 73 (Carta 9) 15/1/1927 Minha queridíssima Iulca, quero descrever-che a minha vida quotidiana nas suas linhas mais essenciais, para que podas acompanhá-la e captes, de tanto em tanto, algum traço. Como sabes, porque já cho deveu escrever Tania, vivo com outros quatro amigos, entre eles o engenheiro Bordiga, de Nápoles, de quem se calhar conheces o nome. Os outros três som: um ex deputado reformista de Perusa, o advogado Sbaraglini e dous amigos do Abruzzo. Agora durmo num quarto com um destes abruzzeses, Piero Ventura; antes dormíamos três, porque estava com nós o ex deputado maximalista de Verona Paolo Conca, um exemplo simpático de operário, que à noite nom nos deixava dormir, porque o atormentava a lembrança da mulher; suspirava, ressoprava, acendia logo a luz e fumava uns cigarros malcheirentos. Afinal, a mulher véu também para Ustica para se reunir com o marido, e Conca deixou-nos. Portanto, somos cinco, divididos em três dormitórios (toda a casa): temos ao nosso dispor um lindo terraço, desde o qual admiramos o mar infinito durante o dia e o magnífico céu durante a noite. O céu, livre de qualquer fume urbano, permite desfrutar destas maravilhas com o máximo de intensidade. As cores da água marinha e do firmamento som verdadeiramente extraordinárias, pola variedade e a profundidade: vim arcos-da-velha únicos no seu género. De manhá, como de costume, som o primeiro em erguerme; o engenheiro Bordiga afirma que o meu passo tem a essa hora caraterísticas especiais; é o passo do homem que nom tomou ainda o café e que o aguarda com umha certa impaciência. Fago eu mesmo o café, se nom consigo convencer 74 o Bordiga para que o faga, dadas as suas notáveis aptitudes para a cozinha. A seguir, começa a nossa vida: vamos à escola, como professores ou como alunos. Se for dia do serviço postal, vamos para a marinha, aguardando com ánsia a chegada do barco: se o correio nom chega por causa do mau tempo, é um dia perdido e umha certa melancolia se estende por todos os rostos. Ao meio-dia comemos: eu participo numha cantina comunitária e justo hoje me toca fazer de camareiro e de ajudante de cozinheiro: nom sei ainda se terei de pelar as batatas, preparar as lentilhas ou limpar a leituga antes de servir a mesa. A minha estreia é aguardada com muita curiosidade: bastantes amigos queriam substituir-me no serviço, mas fiquei inamovível na minha vontade de cumprir com a minha parte. De tarde temos de voltar para os nossos quartos às oito. Por vezes, há visitas de vigiláncia para comprovar se estamos verdadeiramente em casa. A diferença dos presos comuns, nós nom estamos fechados por fora. Outra diferença consiste em que a nossa saída livre dura até as oito, e nom apenas até as 5; poderíamos obter licenças vespertinas se fossem necessárias por algum motivo. Na casa, jogamos cartas à noite. Nom tinha jogado nunca até agora; Bordiga afirma que tenho madeira para chegar a ser um bom jogador científico de scopone. Reconstruim já umha certa biblioteca e podo ler e estudar. Os livros e os jornais que me chegam causárom umha certa luita entre eu e Bordiga, quem sustenta sem razom que eu som mui desordenado; a traiçom, ele leva a desordem às minhas cousas, com a excusa da simetria e da arquitetura: realmente, já nom dou encontrado nada na simétrica trapalhada que me organizou. Queridíssima Iulca: escreve-me muito sobre a tua vida e mais sobre as crianças. Assim que podas, manda-me a fotografia de Giuliano. Delka fijo mais progressos? Cresceu-lhe 75 mais o cabelo? A doença tivo algumha consequência? Escreve-me muito sobre Giuliano. E Genia sanou? Um abraço mui forte Antonio • (Carta 10) Milám, 12 de fevereiro de 1927 Queridíssimas17, escrevo para duas a um tempo para utilizar melhor as poucas cartas que me permitem escrever. Saim de Ustica na manhá do 20, repentinamente18: quase que nom tivem tempo de ditar umha breve carta e de enviar um telegrama para avisarvos. Pensava passar por Roma de caminho; porém, polo que parece foi umha interpretaçom errada do telegrama em que se comunicava o meu arresto, fum trasladado a Milám por transferência ordinária, e nom extraordinária: assim, andei de viagem dezanove dias. Em Isernina conseguim enviar um telegrama em que vos avisava da mudança no itinerário. Esta viagem foi para mim um triplo ou quádruplo desafio, quer do ponto de vista moral quer, e especialmente, do físico. Nom quero descrevê-lo ainda polo miúdo, para nom assustar-vos e por nom dar-vos a impressom de estar feito um farrapo. Nes- 17 Tania e Giulia. 18 Depois de sentenciar o desterro, o juiz Enrico Macis do Tribunal Militar de Milám, sob a encomenda do Tribunal Especial, reabrira a instruçom relativa a G. e a 14 de janeiro de 1927 pronunciou o mandado de arresto. Após deixar Ustica a 20 de janeiro em «transporte ordinário», G. chegou aos cárceres judiciários de Milám na tarde de dia 7 de fevereiro de 1927. Nos dias 9 de fevereiro, 20 de março e 2 de junho foi interrogado polo juiz Macis. 76 tes dezanove dias «morei» nos seguintes cárceres: Palermo, Nápoles, Caianello, Isernia, Sulmona, Castellamare Adriatico, Ancona, Bolónia; na noite do dia 7 cheguei a Milám. Em Cajanello e em Castellamare nom há cárceres; «dormim» nas cámaras de segurança do Quartel dos Carabineiros; fôrom as duas noites mais cativas que tenho passado, talvez em toda a minha vida. Em Castellamare apanhei um estupendo resfriado, que neste momento já quase que me passou. Nas travessias Ustica-Palermo e Palermo-Nápoles o estado do mar era péssimo; porém, nom sofrim. A travessia Palermo-Nápoles merece ser descrita: farei-no noutra carta, quando tiver repensado todos os detalhes e refrescado a memória. A viagem foi em geral para mim como um filme longuíssimo: conhecim umha infinidade de tipos, dos mais vulgares e nojentos, aos mais curiosos e ricos em caraterísticas de interesse. Entendim o difícil que é compreender a partir de sinais exteriores a verdadeira natureza das pessoas; por exemplo, em Ancona, um velhinho bonacheirom, com face de honesto homem de províncias, perguntou-me se lhe cedia a minha sopa, que eu decidira nom comer; figem-no com prazer, impressionado pola serenidade dos seus olhos e pola modéstia desenvolta do seu proceder; avisá- rom-me mais tarde de que era um cabrom nojento: violara a filha. Quero-vos dar umha visom de conjunto da viagem. Imaginai que de Palermo a Milám se arrasta um imenso verme, que se contrai e se descontrai, que se articula e se desarticula sem parar, deixando em cada cárcere umha parte dos seus aneis, substituindo-os por uns novos, agitando-se à direita e à esquerda das formaçons e incorporando as extraçons no regresso. Este verme tem covis em cada cárcere, que se chamam «tránsitos», onde ele fica entre dous e oito dias, e que 77 acumulam, fazendo com que calhem, a imundície e a miséria de geraçons. Chegamos, cansos e sujos, com os pulsos doridos polas longas horas de ferros, com a barba comprida, com o cabelo em desordem, com os olhos encovados e cintilantes polo ánimo exaltado e pola insónia; deitamo-nos no chao de terra sobre enxergons que tenhem quem sabe que antiguidade, vestidos, para nom termos contato com a porcaria, tapandonos o rostro e as maos com os mesmos panos, cobrindo-nos com mantas insuficientes, polo menos para nom congelar-nos. Partimos novamente, ainda mais sujos e cansos, até o novo tránsito, com os pulsos ainda mais lívidos polo frio dos ferros e o peso das cadeias e polo cansaço de transportar, assim arrumados, as nossas bagagens: mas, paciência, agora tudo passou e já descansei. Estou aqui, numha boa cela, aquecida polo sol, coberto por umha camisola de lá que comprei assim que pudem; finalmente tornei a friagem dos meus velhos ossos. Descreverei-vos noutras cartas alguns dos meus companheiros de cadeia e de viagem: tenho um feixe deles avondo interessante. Reparei nomeadamente num réu condenado a cadeia perpétua, que encontrei em Nápoles, quando estava no pátio; soubem unicamente o seu nome, Arturo, e estes detalhes: que tem 46 anos, que cumpriu já 22 anos de condena, dos quais 10 de segregaçom (isolado) e que é sapateiro remendom. É um homem lindo, esbelto, de traços finos e elegantes; fala com umha precisom, umha clareza e umha segurança de pasmar. Nom tem umha grande cultura, embora cite amiúde Nietzsche: dizia «Dies iràë», redobrando a «a-e». Vim-no em Nápoles, sereno, sorridente, tranquilo; tinha como umha tinta de pergaminho nas tempas e nas orelhas, quer dizer, a pele amarelenta, como curtida. Partiu de Nápoles dous dias antes 78 do que eu. Vim-no novamente em Ancona, ao chegarmos à estaçom, sob a chuva: obrigaram-no a fazer a linha Campobasso-Foggia, acho, e nom a de Cajanello-Castellamare, porque sendo um condenado a cadeia perpétua teria tentado a fuga nestes tránsitos, ainda a risco de um disparo de espingarda por parte dos guardas. Cumprimentou-me, ao reconhecerme ao instante. Vim-no novamente no Registro do cárcere de Ancona: deixaram-lhe as cadeias, porque devia caminhar até a cela, ao ter chegado ao seu destino, e devia atravessar uns pá- tios, embora internos. Mudara completamente desde Nápoles: na verdade, lembrou-me o Farinata: o rosto duro, anguloso, os olhos pungentes e frios, o peito para fora, o corpo todo teso, como umha mola pronta a saltar: apertou-me a mao duas ou três vezes e desapareceu, engolido pola prisom. Basta. Vede, laretei como umha lercha. Para já, sabede que estou bem, que nom preciso nada, que estou tranquilo e que aguardo notícias vossas e das crianças. Lembra-se Delio de mim algumha vez? Tendes de enviar-me a fotografia de Giuliano. Um abraço tenro para todos. Antonio • (Carta 11) 19/II/1927 Queridíssima Tania, desde há um mês e dez dias nom recebo notícias e nom encontro explicaçons. Como já che escrevim umha semana atrás, ao partir de Ustica, o barco nom chegava desde havia quase dez dias: no barco que me levou a Palermo deviam ter chega- 79 do a Ustica polo menos um par de cartas tuas, que tinham de ter encaminhado para Milám; porém, na correspondência que recebim aqui, de volta à ilha, ainda nom encontrei nada teu. Queridíssima, se se tratasse de algumha cousa que depende de ti e nom já (como é possível e provável) de algum obstá- culo administrativo, deves evitar inquietar-me assim durante tanto tempo: isolado como estou, qualquer novidade e qualquer interrupçom da normalidade levam-me a pensamentos atormentados e penosos. As tuas últimas cartas, recebidas em Ustica, eram verdadeiramente um pouco preocupantes; que som essas preocupaçons sobre a minha saúde, que chegam até fazer-che estar mal fisicamente? Asseguro-che que sempre estivem bastante bem e que tenho em mim energias físicas que nom podem esgotar-se facilmente, apesar das aparências de fragilidade. Achas que nom quer dizer nada que tivesse levado sempre umha vida extremamente sóbria e rigorosa? Reparo agora no que significa nom ter tido nunca doenças de gravidade e nom ter inferido ao organismo nengumha ferida fatal; podo cansar-me terrivelmente, é verdade; mas um pouco de repouso e de alimento conseguem que recupere rapidamente a normalidade. Em resumo, nom sei o que escrever para conseguir que estejas calma e sá: tenho que recorrer às ameaças? Poderia nom escrever-che mais, sabes?, e fazer com que sintas também tu o que significa a completa falta de notícias. Imagino-te séria e sombria, sem um sorriso, nem sequer fugidio. Quereria fazer de algumha maneira que te alegrasses outra vez. Contarei-che pequenas histórias; o que achas? Por exemplo, quero contar-che algo, a modo de entremês na descriçom da minha viagem neste mundo tam grande e terrível, sobre mim mesmo e a minha fama, mui engraçado. Eu nom som conhecido fora de um círculo mui restrito; por isso, o meu nome é deturpado dos jeitos mais inverosímis: Gramas- 80 ci, Granusci, Grámisci, Granísci, Gramásci, até Garamáscon, com todos os graos intermédios mais estranhos. Em Palermo, durante certa espera para o controlo das bagagens, estivem num depósito com um grupo de operários turineses que se dirigiam para o desterro; junto a eles estava um tipo formidável de anarquista ultra-individualista, conhecido com o sobrenome do «Único19», dos que se negam a confiar em ninguém, mas principalmente na polícia e nas autoridades em geral; a sua identificaçom: «som o Único e basta», eis a sua resposta. Na multitude que aguardava, o Único reconheceu entre os delinquentes comuns (mafiosos) um outro arquétipo, siciliano (o Único devia ser napolitano ou de mais abaixo), detido por motivos vários, entre o político e o comum, e passou às apresentaçons. Apresentou-me: o outro fitou-me devagar e perguntou enseguida: «Gramsci, Antonio?» Sim, Antonio! — respondim. «Nom pode ser, replicou, porque Antonio Gramsci tem que ser um gigante e nom um homem tam pequeno». Nom dixo mais nada, retirou-se a um cantinho, sentou sobre um assento indescritível e permaneceu, como Mário sobre as ruínas de Cartago, a meditar sobre as suas ilusons perdidas. Evitou cuidadosamente falar mais comigo durante o tempo em que ainda permanecimos na mesma sala e nom se despediu de mim quando nos separárom. Há um outro episódio parecido que me aconteceu mais tarde, mas que em minha opiniom é ainda mais interessante e complexo. Estávamos para partir; os guardas das escolta pugeram-nos já os ferros e as cadeias; fora amarrado de umha maneira nova e mui desconfortável, já que os ferros me apertavam os pulsos de forma rígida, o osso do pulso estava fora 19 Do título do livro do filósofo anarquista alemám Max Stirner, L’Unico e la sua proprietà, publicado na Itália em 1902. 81 do ferro e batia contra ele de umha maneira dolorosa. Entrou o chefe da escolta, um primeiro-sargento gigantesco, que ao fazer o reconto se parou no meu nome e perguntou-me se era parente do «famoso deputado Gramsci». Respondim que esse homem era eu próprio e fitou-me com um olhar compassivo, murmurando algo incompreensível. Em todas as paragens sentim que falava de mim, sempre qualificando-me como o «famoso deputado», nos grupos que se formavam em volta do vagom celular (devo acrescentar que mandou que me colocassem os ferros de maneira suportável), a tal ponto que, visto o vento que sopra, pensava, ainda por cima, podia receber umha malheira de algum exaltado. Num determinado momento, o primeiro-sargento, que viajava no segundo vagom celular, passou àquele onde me encontrava eu e travou conversa. Era um tipo extraordinariamente interessante e estranho, cheio de «necessidades metafísicas», como diria Schopenhauer, mas que conseguia satisfazê-las da maneira mais extravagante e desordenada que se poda imaginar. Dixo-me que se imaginara sempre a minha pessoa como «ciclópea» e que se desiludira muito deste ponto de vista. Estava a ler um livro de M. Mariani, o Equilibrio degli egoismi20, e acabava de ler havia pouco um livro de um tal Paolo Gilles, de confutaçom do marxismo21. Tivem bom cuidado de lhe dizer que o tal Gilles era um 20 A obra citada por G. é de 1924 e expom um confuso projeto de reforma social. Mario Mariani (1884-1951) foi um escritor de certo relevo na primeira pós-guerra, autor de relatos e romances de inspiraçom erótico-social. 21 Trata-se do Abozzo di umha filosofia della dignità umana [Esboço de umha filosofia da dignidade humana], de Paul Gille, e nom Gilles, professor do Institut de Hautes Études de Bruxelas. A obra foi publicada na França em 1924 e a traduçom italiana é da editora Social é de 1926, como prefácio de Francesco Merlino. A introduçom, «O sofisma anti-idealista de Marx», pp. 9-23, contém de facto umha tentativa de refutaçom do marxismo. 82 anarquista francês sem qualquer educaçom científica ou de outro tipo: gostava de escutá-lo falar com grande entusiasmo de tantas ideias e noçons disparatadas e inconexas, como poderia falar um autodidata inteligente, mas sem disciplina nem método. Num determinado momento começou a chamar-me de «mestre». Divertim-me muito, como podes imaginar. E assim tivem a experiência da minha «fama». O que achas? Quase acabei a carta. Queria descrever-che polo miúdo a minha vida aqui. Farei-no esquematicamente. Acordo de manhá às seis e meia, meia hora antes da diana. Preparo um café bem quente (aqui em Milám está permitido o combustível «Meta», mui cómodo e útil): limpo a cela e asseio-me. Às sete e meia recebo meio litro de leite ainda quente, que bebo imediatamente. Às oito saio ao pátio, isto é, saio de passeio, que dura duas horas. Levo um livro, passeio, leio, fumo algum cigarro. Ao meio-dia recebo a comida de fora, assim como à noite recebo a ceia: nom consigo comer tudo, embora coma mais do que em Roma. Às sete da noite vou para a cama e leio até as onze aproximadamente. Recebo durante o dia cinco jornais: Il Corriere, La Stampa, Il Popolo d’Italia, Il Giornale d’Italia e Il Secolo. Subscrevim-me à biblioteca, com dupla assinatura, e tenho direito a oito livros por semana. Compro aliás algumha revista e Il Sole, um jornal económico-financeiro de Milám. De maneira que sempre estou a ler. Lim já as Viagens de Nansen22 e outros livros dos quais che falarei noutra ocasiom. Nom tivem mal-estares de importáncia, com a exceçom da friagem dos primeiros dias. Escreve-me, queridíssima, e man- 22 Trata-se, mui provavelmente, da obra do cientista e explorador norueguês Fridjof Nansen, La spedizione polare norveggese. Tra ghiacci e tenebre [«A expediçom polar norueguesa. Entre gelos e trevas»], publicado em Roma entre 1893 e 1896. 83 da-me notícias de Giulia, de Delio, de Giuliano, de Genia e de todos os demais: e notícias tuas. Um abraço Antonio A carta passada e mais esta nom estám franqueadas, porque esquecim comprar a tempo os selos. • (Carta 12) 26 de fevereiro de 1927 Queridíssima mae, Encontro-me em Milám desde dia 7 de fevereiro, nos cárceres judiciários de San Vittore. Saim de Ustica a 20 de janeiro e foi-me entregue aqui umha carta tua, sem data, mas que deve ser dos primeiros dias de fevereiro. Nom deves preocupar-te por umha mudança nas minhas condiçons; isso agrava só até certo ponto o meu estado; trata-se apenas de um aumento das maçadas e dos aborrecimentos, mais nada. Também nom quero dizer-che polo miúdo em que consiste a acusaçom que se me fai, pois nem eu próprio a dei compreendido até agora; de algumha maneira, trata-se das habituais questons políticas, polas quais já fora condenado a cinco anos de desterro em Ustica. Fará falta paciência, e eu paciência tenho-a a toneladas, a vagons, a casas (lembras como dizia Carlo quando era pequeno e comia algum doce saboroso? «Quereria cem casas»; eu de paciência tenho kentu domus e prus23). 23 Expressom sarda, «cem casas, e mais». 84 Ora, também tu terás que ter paciência e valor. Na tua carta, porém, penso que te me mostras num estado de ánimo bem diferente. Escreves que te sentes velha etc. Pois bem, estou certo de que ainda és mui forte e resistente, apesar da tua idade e das grandes penas e os grandes trabalhos polos que tiveche que passar. Corrias, corriazzu, lembras24? Estou certo que ainda nos veremos todos juntos, filhos, netos e talvez, quem sabe, bisnetos, e faremos umha comida grandíssima, com kulurzones e pardulas e zippulas e pippias de zuccuru e figu sigada25 (nom desses figos secos, porém, daquela famosa tia Maria de Tadasuni). Achas que Delio gostará dos pirichittos e das pippias de zuccuru? Acho que sim, e que também ele dirá que quer cem casas delas; nom poderias crer quanto se parece com o Mario e com o Carlo quando era umha criança, polo que eu lembro, nomeadamente com o Carlo, à parte do nariz, que Carlo tinha naquela época mais pequena. Algumha vez penso em todas estas cousas e gosto de lembrar os feitos e as cenas da infáncia: encontro nelas muitas dores e muitos sofrimentos, é verdade, mas também algo alegre e formoso. E depois estás sempre tu, querida mamae, e as tuas maos sempre atarefadas por nós, para aliviar as nossas mágoas e para tirar algum proveito de todas as cousas. Lembras as que tramavas para arranjar um café bom, sem cevada e outras porcarias do gênero? Olha: quando penso em todas estas cousas, penso também que Edmea nom terá estas lem- 24 Trocadilho feito com o nome dos Corrias, parentes da mae de G., e coriazzu, que em sardo significa «resistente», «duro como o coiro». 25 Kulurzones som ravioli, pasta fresca recheia de queijo; pardulas e zippulas som doces típicos sardos. Figu sigada, e mais as pippias de zuccuru, som pastéis em forma de boneca. 85 branças quando seja grande e que isso há de influenciar muito o seu caráter, causando nela umha certa indolência e um certo sentimentalismo, que nom som mui recomendáveis nos tempos de ferro e de fogo em que vivemos. Dado que também Edmea terá que abrir-se caminho por si própria, cumpre pensar em fazê-la mais forte do ponto de vista moral, para impedir que continue a crescer rodeada dos costumados elementos da vida fossilizada do rural. Acho que vós tendes que explicar-lhe, com muito tato, naturalmente (porque Nannaro nom se ocupa demasiado dela e parece que a descuida), devedes explicar-lhe como seu pai nom pode voltar hoje do estrangeiro e como isto se deve ao facto de que Nannaro, como eu e muitos outros, pensárom que as muitas Edmeas que vivem neste mundo deviam ter umha infáncia melhor da que nós passámos e melhor da que ela mesma passa. E devedes dizer-lhe, sem voltas, que eu estou em prisom, igual que seu pai está no estrangeiro. Devedes, certamente, ter em consideraçom a sua idade e o seu caráter, evitando que a pobre se entristeça demasiado, mas devedes dizer-lhe a verdade na mesma, para que some dessa maneira recordaçons de fortale- ça, de coragem e de resistência às magoas e às voltas que dá a vida. Queridíssima mae, nom deves preocupar-te por mim e nom deves pensar que eu esteja mal. Na medida do possível, estou bem. Tenho umha cela de pagamento, quer dizer, umha cama bastante boa: tenho até um espelho para me remirar. Recebo de umha cantina dous pratos por dia; de manhá tomo meio litro de leite. Tenho ao meu dispor um pequeno aparelho para requentar os alimentos e fazer-me um café. Leio os jornais polo dia e oito livros por semana, além das revistas ilustradas e humanísticas. Tenho cigarros «Macedonia». Em resumo, do ponto de vista material, nom sofro nengumha fal- 86 ta destacável. Nom podo escrever o que me parece e recibo os correios de maneira mui irregular, isso sim. Desde fai aproximadamente um mês e meio nom tenho notícias de Giulia e dos meus filhos. Por isso nom podo escrever-che nada sobre eles. Porém, sei que do ponto de vista material estám bem, e que a Delio e Giuliano nom lhes falta de nada. A propósito, recebeche umha fotografia preciosa de Delio que deviam ter-che enviado? Se a recebeche, escreve-me as tuas impressons. Queridíssima mai, prometo escrever-che polo menos cada três semanas e ter-te contente; escreve-me também tu e fai que me escrevam Carlo, Grazietta, Teresina, meu pai, Paolo e também Edmea, quem, penso eu, deve ter feito progressos e já deve saber juntar algumha letrinha; cada carta que recebo é para mim um grande consolo e um bom entretenimento. Um abraço com tenrura para todos; para ti, queridíssima mae, o mais tenro abraço Nino O meu endereço é agora: Cárcere judiciário – Milám. • (Carta 13) 19/III/1927 Queridíssima Tania, recebim esta semana dous postais teus; um de dia 9 e outro de 11 de março: porém, nom recebim a carta que mencionas. Achava que recebia a tua correspondência, encaminhada de Ustica: na prática, chegou-me um pacote de livros da ilha e o copista que mos entregou dixo-me que o pacote continha 87 também cartas sem abrir e postais que deviam passar ainda pola seçom de revisom; espero recebê-las dentro de uns dias. Agradeço-che as notícias que me mandas sobre Giulia e as crianças; nom consigo escrever diretamente a Giulia, à espera de receber algumha carta sua, também com muito atraso. Imagino o seu estado de espírito, para além do físico, por todo um conjunto de razons; essa doença deveu ser bem angustiosa. Pobre Delio; da escarlatina à gripe, em tam pouco tempo! Escreve tu à avó Lula26, e pede-lhe que me escreva umha longa carta, em italiano ou em francês, como puder (de resto, tu podias mandar-me só a traduçom), e que me descreva, com todo detalhe, a vida das crianças. Convencim-me a mim mesmo de que as avós sabem descrever as crianças e os seus movimentos melhor do que as maes, de umha maneira real e concreta; som mais objetivas, e depois tenhem a experiência de todo um percurso vital; acho que a tenrura das avós é mais substanciosa que a das maes (porém, Giulia nom deve ofender-se e considerar-me pior do que som!). Nom sei sugerir-che mesmo nada para Giuliano; neste terreno já me equivoquei umha vez com Delio. Se calhar, eu próprio poderia fabricar-lhe algumha cousa adequada, se pudesse estar perto dele. Decide tu, à vontade, e escolhe algumha cousa em meu nome. Fabriquei nestes dias umha bola com papelom, que está acabando de secar; acho que che será impossível enviar-lha a Delio; de resto, ainda nom dei pensado como é que lhe vou poder dar o verniz, e sem ele desfará-se facilmente por causa da humidade. A minha vida decorre sempre igual de monótona. Mesmo o estudo é bem mais difícil do que me parecera. Rece- 26 Diminutivo com o que Delio e Giuliano chamavam à sua avó materna, com quem moravam. 88 bim algum libro e a verdade é que leio muito (mais de um volume por dia, além dos jornais), mais nom é a isto a que me refiro, senom que tento dizer outra cousa. Atormenta-me esta ideia (esta é a condiçom própria dos presos, penso): seria necessário fazer algumha cousa «für ewig»27, segundo umha complexa conceçom de Goethe, que lembro tem atormentado muito o nosso Pascoli. Em resumo, eu quereria, segundo um plano pré-estabelecido, ocupar-me intensa e sistematicamente nalgum tema que me absorvesse e centralizasse a minha vida interior. Pensei até agora em quatro temas, e isto é já umha indicaçom de que consigo concentrar-me, a saber: 1° umha pesquisa sobre a formaçom do espírito público na Itália do século passado; por outras palavras, umha pesquisa sobre os intelectuais italianos, as suas origens, os seus agrupamentos por correntes culturais, os seus diferentes modos de pensar, etc., etc. Argumento sugestivo em sumo grau, e que eu naturalmente somente poderei esboçar em grandes linhas, dada a absoluta impossibilidade de ter à minha disposiçom a imensa mole de material que seria necessária. Lembras o rapidíssimo e mui superficial escrito meu sobre a Itália meridional e sobre a importáncia de B. Croce?28. Pois bem, gostaria de desenvolver amplamente a tese que esboçara na altura, de um ponto de vista «desinteressado», für ewig. —2° Um estudo de lingüística comparada! Nada menos. Mas que poderia ser mais «desin- 27 «Para a posteridade». No tocante a Pascoli, veja-se o poema «Per sempre», nos Canti di Castelvecchio. 28 Trata-se do ensaio, que ficou inacabado, Alcuni temi della quistione meridionale, que G. escreveu em outubro de 1926, poucas semanas antes do seu arresto. O manuscrito, que escapou aos registros da polícia, foi recuperado e posto a salvo a começos de 1927 por Camilla Ravera, que o levou para a Suíça. O ensaio foi publicado pola primeira vez na França, na revista do P.C.I., «Stato operário», ano IV (1930), pág. 9 e ss. 89 teressado» e für ewig que isso? Seria questom, naturalmente, de tratar apenas a parte metodológica e puramente teórica do tema, que nom foi nunca tratada de umha maneira completa e sistemática com o novo ponto de vista dos neolingüistas, contrário ao dos neogramáticos. (Darei-che arrepios, querida Tania, com esta carta minha!). Um dos maiores «remorsos» intelectuais da minha vida é a mágoa profunda que causei ao meu bom professor Bartoli29, da Universidade de Turim, que estava convencido de que eu era o arcanjo destinado a derrotar definitivamente os «neogramáticos», já que ele, da mesma geraçom e atado por milhons de fios académicos a essa gentalha de péssimos homens, nom queria ir, nos seus enunciados, para além duns certos limites fixados polas conveniências e pola deferência aos velhos monumentos funerários da erudi- çom. —3° Um estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre a transformaçom do gosto teatral italiano que Pirandello representou e que contribui para a sua configuraçom. Sabes que eu, muito antes que Adriano Tilgher, descobrim e contribuim para a popularizaçom do teatro de Pirandello? Escrevim sobre Pirandello, desde 1915 até 1920, como para juntar um pequeno volume de 200 páginas30 e na altura as minhas afirmaçons eram originais e sem precedentes: o Pirandello era aturado por cortesia ou era abertamente ridicularizado. —4° Um ensaio sobre romances de folhetim e o gosto popular em literatura. A ideia véu-me lendo a notícia da morte de Serafino Renzi, 29 Matteo Giulio Bartoli (1873-1946), professor de Linguística na Universidade de Turim. 30 Nas crônicas teatrales escritas para a ediçom turinesa do Avanti! entre 1916 e 1920. [Há ediçom galega publicada pola Universidade da Corunha e traduzida por Xesús González Gómez]. Para os estudos de Tilgher sobre o teatro de Piradello, cfr. os recolhidos nos volumes Voci del tempo, Librerie di Scienze e Lettere, Roma 1921, e Studi sul teatro contemporaneo, ibi., 1923. 90 diretor de dramas populares, reflexo teatral dos romances de folhetim, ao lembrar quanto me divertira as vezes que fora vê- lo, porque a representaçom era dupla: a emoçom, as paixons desencadeadas, a intervençom do público popular nom era, decerto, a representaçom menos interessante. Que che parece isto todo? No fundo, para quem observe com atençom, entre estes quatro temas existe umha homogeneidade: a alma criativa do povo, nas suas diferentes fases e graus de desenvolvimento, está na sua base em igual medida. Escreve-me as tuas impressons; confio muito no teu bom senso e no fundamento dos teus juízos. Aborrecim-te?. Sabes?, para mim escrever substitui as conversas: quando che escrevo, acredito que estou a falar-te de verdade; só que tudo se reduz a um monólogo, porque as tuas cartas, ou nom me chegam, ou nom correspondem com a conversa iniciada. Por isso, escreve-me cartas, com mais vagar, além dos postais; eu escreverei-che umha carta cada sábado (podo escrever duas por semana) e será um desabafo. Nom retomo a narra- çom das minhas aventuras e impressons da viagem, nom sei se che interessam; é certo que tenhem um valor pessoal para mim, em quanto que estám ligadas a determinados estados de ánimo e também a determinados sofrimentos; para fazê-las interessantes para os demais seria necessário, se calhar, expô- las em forma literária; mas eu tenho que escrever de golpe, no pouco tempo em que me deixam o tinteiro e a caneta. De resto, a plantinha do limoeiro continua a crescer? Nom me digeche nada mais. E a dona da minha casa, como está? Ou é que morreu? Sempre me esqueço de perguntarcho. A primeiros de janeiro recebim em Ustica umha carta do senhor Passarge, que estava desesperado e achava próxima a morte da mulher; depois nom soubem mais nada. Pobre senhora, temo que a cena do meu arresto contribuíra para 91 acelerar o seu mal, já que me queria bem e estava tam pálida quando me levárom!. Um abraço, querida, quere-me e escreve-me. Antonio • (Carta 14) 26 de março de 1927 Queridíssima Teresina, há só poucos dias entregárom-me a carta que me enviaras a Ustica e que continha a fotografia de Franco. Pudem ver assim, finalmente, o teu pequeninho; dou-che todos os meus parabéns. Mandarás-me também —nom é?— a fotografia de Mimí, e assim estarei mesmo contente. Impressionou-me muito que Franco, polo menos na fotografia, se pareça pouquíssimo com a nossa família: deve parecer-se com Paolo e a sua estirpe campidanesa, e se calhar até maurreddina31: e Mimí com quem se parece? Deves escrever-me com mais vagar sobre os teus filhos, se tiveres tempo, ou polo menos fai que me escreva Carlo ou Grazietta. Franco parece-me mui esperto e inteligente: acho que já fala bem. Em que língua fala? Espero que o deixedes falar em sardo e que nom o incomodedes neste sentido. Foi um erro, para mim, nom ter deixado que Edmea, desde bem pequena, falasse em sardo com liberdade. Isso prejudicou a sua formaçom intelectual e pujo umha camisa de força à sua fantasia. Nom deves cometer este erro com os teus filhos. O sardo nom é um dialeto, mas umha língua de seu, embora 31 Maurreddu: chama-se assim em sardo a quem vive na zona de Oristano e Cagliari, e em geral nas regions meridionais de Sardenha. 92 nom tenha umha grande literatura, e é bom que as crianças aprendam mais línguas, se for possível. À parte que o italiano que lhe ides ensinar, será umha língua pobre, eivada, feita dessas poucas frases e palavras das vossas conversaçons com ele, puramente infantil; ele nom terá contato com o ambiente geral e acabará por aprender duas gírias e nengumha língua: umha gíria italiana para a comunicaçom oficial convosco e umha gíria sarda, aprendida aos poucos, para falar com as outras crianças e com as pessoas que encontre pola rua ou na praça. Recomendo-te, mesmo de coraçom, que nom cometas um erro semelhante, que deixes os teus filhos mamarem todo o sardismo que quigerem e que se desenvolvam de maneira espontánea no ambiente natural em que nascêrom: isso nom vai ser um obstáculo para o seu porvir, antes polo contrário. Delio e Giuliano nom estivérom bem nestes últimos tempos: tivérom a gripe; escrevem-me que já se repugérom e que estám bem. Repara em Delio, por exemplo: começou a falar a língua da mae, como era natural e necessário, mas rapidamente foi aprendendo também o italiano, e cantava ainda can- çons em francês, sem que por isso confundisse ou misturasse as palavras de umha ou de outra língua. Eu queria ensinarlhe também a cantar: «Lassa sa figu, puzone»32, mas as suas tias, principalmente, opugérom-se com energia. Divertim-me muito com Delio no passado agosto: estivemos juntos umha semana no Trafoi, no Alto Adige, numha choupana de camponeses alemáns. Delio fazia entom dous anos justos, mas estava já mui desenvolvido intelectualmente. Cantava com muito vigor umha cançom: «Abaixo os frades, abaixo os padres» e depois cantava em italiano: «Il mio sole sta fronte a 32 «Deixa o figo, ó pássaro», em sardo. 93 te» e umha cançom francesa que tinha a ver com um moinho. Convertera-se num entusiasta da procura de amorodos nos bosques e sempre queria correr atrás dos animais. O seu amor polos os animais aproveitava-se de duas maneiras: na música, na medida em que era capaz de reproduzir no piano-forte a gama musical segundo as vozes dos animais, desde o tom de barítono do urso até o agudo do pintinho, e no desenho. Cada dia, quando ia onda ele, em Roma, havia que repetir toda a série: primeiro havia que colocar o relógio de parede sobre a mesa e fazer com que figesse todos os movimentos possíveis; depois havia que escrever umha carta à avó materna com o debuxo dos animais que o impressionaram durante o dia; mais tarde íamos ao piano e tocava a sua música animalesca; depois jogávamos a diferentes cousas. Querida Teresina, mencionache na tua carta que a primeira carta que vos enviei desde Roma estava cheia de desá- nimo. Nom acho ter estado nunca desanimado como pensas. Aquela carta escrevim-na num momento verdadeiramente difícil, relativamente; o dia anterior comunicaram-me a medida de cinco anos de desterro e dixeram-me que em poucos dias teria que partir para Giubaland, na Somália. Com efeito, naquela noite pensei bastante nas minhas possibilidades físicas e de resistência, que na altura nom pudera medir ainda e considerava que eram poucas; é possível que na carta houvesse um reflexo daquele estado de ánimo. Seja como for, deves crer que, embora pudesse sentir naquel momento, como tu dis, um pouco de desánimo, passou-se rapidamente e nom se repetiu mais. Vejo tudo com muita frieza e tranquilidade e, mesmo sem fazer-me ilusons pueris, estou firmemente convencido de que o meu destino nom é apodrecer na cadeia. Tu e os demais tendes que procurar que mamae esteja alegre (recebim umha carta sua que nom sei como responder) e tendes que 94 assegurar-lhe que a minha honradez e a minha integridade nom estám de nengum modo em questom: estou no cárcere por razons políticas, nom por razons de honradez. Acho mesmo que acontece o contrário: se nom me importasse com a minha honradez, a minha integridade, a minha dignidade, se, por outras palavras, fosse capaz de ter o que se chama umha «crise de consciência» e de mudar de opiniom, nom teria sido detido nem teria ido para Ustica, isso para começar. Sobre isto devedes convencer a mamae; é mui importante para mim. Escreve-me e fai que todos me escrevam: já nom vim sequer a assinatura de Grazietta; como está?. Um abraço para Paolo, com afeto; muitos beijos para ti e os teus filhos Nino • (Carta 15) 4 de abril de 1927 Querida, querida Tania, a semana passada recebim dous postais teus (de 19 e de 22 de março) e a carta do 26. Sinto muito ter-te magoado; acho que tampouco tu entendeche bem o meu estado de ánimo, porque nom me expressei bem e sinto que entre nós podam criar-se equívocos. Asseguro-che que nunca, mesmo nunca, me entrárom sequer dúvidas de que pudesses esquecer-me ou pudesses querer-me menos; com certeza, se tivesse pensado, mesmo de longe, umha cousa assim nom che teria escrito mais; esse foi sempre o meu caráter e por isso rompim muitas velhas amizades no passado. Só em pessoa poderia explicarche a razom do nervosismo que se apoderou de mim, depois de dous messes sem notícias; nem tento sequer fazê-lo por 95 carta, para nom cair noutros equívocos igualmente dolorosos. Agora tudo passou e nom quero nem voltar pensar nisso. Desde há alguns dias mudei de cela e de rádio (o cárcere está dividido em rádios) como indica também o cabeçalho da carta; antes estava no 1º raio, cela 13; agora estou no 2º rádio, cela 22. A minha situaçom carcerária, por assim dizer, parece que melhorou. A minha vida decorre, contudo, mais ou menos como antes. Quero descrevê-la para ti um pouco polo miúdo; assim poderás imaginar cada dia o que fago: a cela é ampla como um quartinho de estudante; a olho, calculo três metros por quatro e meio e três e meio de altura. A janela dá ao pátio onde tomamos o ar: nom é umha janela corrente, como é natural; é umha das chamadas «boca de lobo», com grades no interior; podese ver somente um pedaço de céu, nom se pode olhar para o pátio ou para os lados. A disposiçom desta cela é pior que a da anterior, que estava orientada a sul-sudoeste (o sol via-se contra as dez, e às duas ocupava o centro da cela, com umha raiola de polo menos 60 cm.); na cela atual, que deve estar orientada a sudoeste-oeste, o sol vê-se contra as duas e permanece na cela até tarde, mas com umha faixa de 25 cm. Nesta esta- çom, mais quente, talvez seja melhor assim. De resto: a cela atual está situada sobre a oficina mecânica do cárcere e ouvese o ruído das máquinas; e porém já me habituarei. A cela é mui simples e mui completa a um tempo. Tenho o catre contra a parede, com dous colchons (um de lá): cambia-se a roupa branca cada quinze dias aproximadamente. Tenho umha mesinha e umha espécie de armário-cómoda, um espelho, umha bacia e umha jarra de ferro esmaltado. Possuo muitos objetos de alumínio comprados na seçom que a Rinascente33 33 A Rinascente era (e continua a ser) uns grandes armazéns com sucursais em várias cidades italianas e ao que parece também no cárcere (N. do T.). 96 organizou no cárcere. Possuo alguns livros de meu; cada semana recebo para ler oito livros da biblioteca do cárcere (dupla assinatura). Para que te fagas umha ideia, fago-che a listagem desta semana, que contudo é excecional, polo relativo valor dos livros que me tocárom: 1° Pietro Colletta, Storia del Reame di Napoli (ótimo); 2° V. Alfieri, Autobiografia; 3° Molière, Commedie scelte, traduzidas polo senhor Moretti (umha traduçom ridícula); 4° Carducci, 2 v. das obras completas (bem medíocre, entre os piores de Carducci); 5° Artur Lévy, Napoleone intimo (curioso, apologia de Napoleom como «homem moral»); 6° Gina Lombroso, Nell’America meridionale (bastante medíocre); 7° Harnack, L’essenza del Cristianesimo; Virgilio Brocchi, Il destino in pugno, romance (pom medo); Salvator Gotta, La donna mia (ainda bem que é sua, porque é bem aborrecida). De manhá acordo às seis e meia, às sete tocam diana: café, asseio, limpeza da cela; tomo meio litro de leite e como umha sandes; por volta das oito saimos ao pátio durante duas horas. Passeio, estudo a gramática alemá, leio a Signorina contadina de Puškin e aprendo de cor umha vintena de linhas do texto. Compro Il Sole, jornal da indústria e o comércio, e leio algumha notícia económica (lim-me todas os relatórios anuais das sociedades anónimas); às terças compro Il Corriere dei Piccoli, que me diverte; às quintas o Domenica del Corriere; às sextas, o Guerin Meschino, supostamente humorístico. Depois do pá- tio, o café; recibo três jornais, Corriere, Popolo d’Italia, Secolo, que leio (agora o Secolo sai à tarde e nom o vou comprar mais, porque já nom vale para nada); o jantar chega a distintas horas, das doze às três; aqueço a sopa (era isso ou massa), como um bocado de carne (desde que nom seja de boi, porque ainda nom consigo comer carne de boi), um pamzinho, um peda- ço de queijo —nom gosto da fruta— e um quartel de litro de 97 vinho. Leio um livro, passeio, reflito sobre muitas cousas. Às quatro-quatro e meia recibo outros dous jornais, a Stampa e o Giornale d’Italia. Às sete ceio (a ceia chega às seis), sopa, dous ovos crus, um quartel de litro de vinho; o queixo nom o dou comido. Às sete e meia toca a silêncio; vou para a cama e leio livros até as onze-doze. Desde há dous dias, contra as 9 bebo umha xícara de chá de macela. (Continuarei no próximo nú- mero, porque quero escrever-che sobre outras cousas): 1° Nom me fai falta roupa branca, etc. Já tenho suficiente e nom saberia onde meter outros objetos. Os sapatos que tenho som ótimos; tenho também os chinelos. Para já, o uniforme vai bem como uniforme carcerário. Tenho um abrigo que me ajudou nos messes frios e que agora nom me vale para nada. Tenho todas as tuas colheres e as colheres de café, que me prestárom muito (mesmo sem cabo). Tenho seis ou sete nacos de sabom, escovas, escova de dentes, peites, etc, etc. Verdadeiramente, nom me fai falta nada essencial. A tua chegada aqui, poder-te ver, seria umha grandíssima cousa para mim, bem o podes crer! No entanto, cumpre saber, em primeiro lugar, se vou ficar aqui; em segundo lugar, é preciso termos a certeza de que che vam dar a licença para a conversa. Deves lembrar que do ponto de vista jurídico nós nom somos parentes, porque o casal nom foi registado na Itália; do ponto de vista jurídico, eu som solteiro e tu nom podes demonstrar que és minha cunhada. Escrevo-che isto porque seria terrível para mim se vinhesses e depois nom pudesses ver-me. Porém, digo-che que nom é impossível termos a conversa; sei que alguns amigos meus tivérom a conversa com as suas companheiras, sem serem jurí- dicamente as suas mulheres; por que entom havia de ser impossível para as cunhadas? Cumpre falar com um advogado: em Milám seria preciso que te dirigisses ao Advogado Arys 98 (Via Unione 1) quem (como escreveu Bordiga desde Ustica) se interessou por mim. Querida Tania, como me alegraria verte; mas nom deves escrever sobre o tema, se nom for certa a possibilidade de termos a conversa; de outra maneira sofreria demasiado a desilusom. Um abraço Antonio Escuita, querida, para a correspondência, fagamos assim: eu escrevo-che umha carta cada segunda-feira (neste rádio escreve-se às segundas); tu escreve-me umha carta cada semana e mais dous postais, também ilustrados, e manda-me as cartas de Giulia. Sabes? a ideia da censura epistolar arrebata-me outra vez a espontaneidade, como nos primeiros dias em Ustica. Espero converter-me num «sem-vergonha» como antes, mas ainda nom o consigo. Escreve a Giulia que penso muito nela e nas crianças, mas que nom consigo escrever, nom dou; escreveria como quem trabalha num escritório e é umha cousa que dá arrepios. •

CARTA 16

11 de abril de 1927 Queridíssima Tania, recebim os teus postais de 31 de março e de 3 de abril. Agrade- ço-che as novas que mandas. Espero a tua chegada a Milám, mesmo se —devo confesá-lo— nom quero contar demasiado com ela. Pensei que nom seria mui agradável continuar a descriçom, iniciada na anterior carta, da minha vida atual. É melhor que che escreva de cada vez o que me anda na cabeça, sem um plano pré-estabelecido. Escrever converteu-se para mim num tormento físico, porque me dam umhas canetinhas horríveis, que riscam o papel e exigem umha atençom obsessiva à parte mecánica da escrita. Pensava que poderia obter o uso permanente da caneta-tinteiro e propugera-me redigir os trabalhos que che mencionara; porém, nom obtivem a licença e anojaria-me insistir. Por isso escrevo apenas nas duas horas e meia ou três em que se despacha a correspondência semanal (duas cartas); naturalmente, nom podo tomar apontamentos, isto é, na realidade nom podo estudar com ordem e com proveito. Leio à custo. Porém, o tempo passa mui rapidamente, mais do que pensara. Decorrêrom cinco messes do dia do arresto (8 de novembro) e dous messes do dia em que cheguei a Milám. Nom parece verdade que tenha decorrido tanto tempo. Porém, é preciso entender que nestes cinco messes as vim de todas as cores e experimentei as impressons mais estranhas e as mais excecionais da minha vida: Roma: de 8 de novembro até 25 de novembro: isolamento absoluto e rigoroso. 25 de novembro: Nápoles, em companhia dos meus quatro companheiros deputados até o 29 (três, e nom quatro, porque um deles34 34 Enrico Ferrari. 100 fora separado em Caserta para as Trémiti). Embarque para Palermo e chegada a Palermo o 30. Oito dias em Palermo: 3 travessias para Ustica sem sucesso a causa do mar bravo. Primeiro contato com os detidos sicilianos da máfia: um mundo novo, que apenas conhecia intelectualmente; verifico e comprovo as minhas opinions ao respeito, e reconheço-as bastante exatas. O 7 de dezembro, chegada a Ustica. Conheço o mundo dos presos: cousas fantásticas e inacreditáveis. Conheço a colónia dos beduínos da Cirenaica, desterrados políticos: quadro oriental, mui interessante. Vida de Ustica. A 20 de janeiro, parto novamente. Quatro dias em Palermo. Travessia para Nápoles com deliquentes comuns. Nápoles: conheço toda umha série de tipos do maior interesse para mim, que do Sul só conhecia fisicamente Sardenha. Em Nápoles, entre outras cousas, assisto à cena de iniciaçom à camorra: conheço um condenado a prisom perpétua (um certo Arturo) que me deixa umha impressom indelével. Após quatro dias saio de Nápoles; paragem em Cajanello, no quartel dos carabineiros; conheço os meus companheiros de cadeia, que virám comigo até Bolónia. Dous dias em Isernia, com estes tipos. Dous dias em Sulmona. Umha noite em Castellamare Adriatico, no quartel dos carabineiros. Ainda: dous dias com aproximadamente 60 detidos. Organizam-se festas na minha honra; os romanos improvisam um recital bem bonito, Pascarella35 e bosquejos populares do mundo do crime romano. Pulheses, calabreses e sicilianos desenvolvem umha exibiçom de esgrima com faca segundo as regras dos Quatro Estados do mundo do crime meridional (o Estado Siciliano, o Estado Calabrês, o Estado Pulhês, o Estado Napolitano): Sicilianos contra Pulheses, Pulheses contra Calabreses. 35 Cesare Pascarella (1858-1940), poeta em romanesco («dialeto» de Roma). Foi também pintor e tentou o género épico-lírico. 101 Os Sicilianos e os Calabreses nom competem entre si, porque entre os dous estados os ódios som fortíssimos e incluso a exibiçom acabaria sendo séria e cruenta. Os Pulheses som os mestres de todos: esfaqueadores insuperáveis, com umha técnica cheia de segredos e letal, desenvolvida por e para superar todas as outras técnicas. Um velho pulhês, de sessenta e cinco anos, mui respeitado, mas sem cargo «estatal», derrotou todos os campeons dos outros «estados»; depois, como fim de festa, pelejou com um outro pulhês, jovem, de bom corpo e com umha surpreendente agilidade, alto cargo a quem todos obedeciam, e durante meia hora desenvolvérom toda a técnica habitual em todas as esgrimas conhecidas. Umha cena verdadeiramente grandiosa e inesquecível, por tudo, polos atores e polos espetadores: todo um mundo subterráneo, bem complexo, com umha vida de seu, com sentimentos, com pontos de vista, com um aquele de honra, com hierarquias férreas e formidáveis, manifestava-se para mim. As armas eram simples: as colheres, polidas contra a parede, de maneira que o cal marcava os golpes no uniforme. Depois de Bolónia, dous dias, com outras cenas; a seguir, Milám. Com certeza, estes cinco messes fôrom movidos e ricos de impressons para um ou dous anos de ruminaçons. Isto pode explicar-che como passo o tempo, quando nom leio; penso novamente em todas estas cousas, analiso-as capilarmente, embebo-me deste trabalho bizantino. De outra parte, converte-se tudo em demasiado interessante, o que acontece em volta minha e o que consigo compreender. Certo é que me controlo continuamente, porque nom quero cair nas monomanias que caraterizam a psicologia dos detidos; a isso ajuda-me principalmente um certo trasgo irónico e cheio de humor que me acompanha sempre. E tu que fás, em que pensas? Quem che compra os romances de aventuras, agora que eu nom estou? Sei que leche outra vez as maravilhosas histórias 102 de Corcoran e da sua gentil Lisotta36. Frequentas este ano as aulas do Policlínico? O professor Baronia, é aquele que achou o bacilo do sarampo37? Acompanhei as suas lamentáveis vicissitudes; nom compreendim polos jornais se também o professor Cirincione fora suspenso. Tudo isto está, polo menos numha parte, ligado ao problema da máfia siciliana. É inacreditável como os Sicilianos, desde o estrato mais baixo às cimas mais altas, som solidários entre eles e como até os cientistas de valor inegável se situam nas margens do Código Penal por este sentimento de solidariedade. Estou convencido de que realmente os sicilianos som um caso à parte; há maior semelhança entre um calabrês e um piemontês que entre um calabrês e um siciliano. As acusaçons que os meridionais em geral lançam contra os Sicilianos som terríveis: acusam-nos até de canibalismo. Nom teria crido nunca que existissem tais sentimentos populares. Penso que faria falta ler muitos livros sobre a história dos últimos séculos, nomeadamente sobre o período da separaçom de Sicília e o Sul de Itália durante os reinados de José Bonaparte e Joaquim Murat em Nápoles, para encontrar a origem de tais sentimentos. Estou entusiasmado com o gorro; onde conseguiche encontrá-lo? Penso que é o gorro de Orgosolo, vermelho e azul, que eu nom conseguira encontrar. Nom poderei mandar a bola de papelom e igualmente, nem tu vas poder mandar o verniz: acho que é absolutamente impossível, sobretudo o ver- 36 Trata-se de Les merveilleuses aventures du capitain Corcoran (1867), o mais célebre dos livros infantís do romancista e jornalista francês Alfred Assolant (1827-1886). Lisotta, ou Louison, é um tigre fémia, companheira inseparável do capitám Corcoran. 37 Giuseppe Caronia, catedrático da Universidade de Roma, fora suspendido temporariamente nas suas funçons docentes devido a alguns incidentes acontecidos com doentes da clínica da universidade. Cirincione (1863-1929), professor de oftalmologia da Universidade de Roma. 103 niz, que pode ser considerado um veneno, conforme o regulamento, e exigiria toda umha série de controlos mui complexos. Ai o tés, olha; um outro objeto de análise mui interessante: o regulamento carcerário e a psicologia que cresce em volta dele, de umha parte, e em volta do contato com os presos, de outra, entre o pessoal de vigiláncia. Eu achava que duas obras mestras (e digo-o absolutamente a sério) concentravam a experiência milenária da Humanidade no campo da organizaçom das massas: o manual do cabo e o catecismo católico. Estou convencido de que é preciso acrescentar, embora num campo muito mais concreto e de caráter excecional, o regulamento carcerário, que guarda verdadeiros tesouros de introspeçom psicológica. Espero as cartas de Giulia: penso que depois de tê-las lido, conseguirei escrever-lhe diretamente. Nom penses que isto é umha cousa de crianças. Umha notícia importante: desde há alguns dias como muito; porém, nom dou comido a verdura; figem esforços denodados e já renunciei porque me revolve de um jeito terrível. Seja como for, nom consigo esquecer que ao melhor vés e que talvez (ai de mim!) poderemos ver-nos novamente, embora seja durante uns minutos. Um abraço Antonio • 104 (Carta 17) 18 de abril de 1927 Minha queridíssima Iulca, escrevo novamente, depois de tanto tempo. Só poucos dias atrás recebim duas cartas tuas: umha de 14 de fevereiro e outra de 1 de março, e pensei muito em ti; figem até um inventário de todas as minhas lembranças, e sabes que imagem me ficou mais impressa? Umha das primeiras, de há muito tempo. Lembras quando te foras do Bosque de Prata38, no fim do teu mês de férias? Acompanhara-te até a beira da estrada principal e ficara um bom pedaço a olhar-te, enquanto te afastavas. Acabávamos de conhecer-nos, e contudo já che tinha feito bastantes desprezos e figera-che também chorar; mofava-me de ti com a assembleia dos mouchos e tu pugeras-me a pele de galinha ao tocares Beethoven. Assim te vejo sempre, afastando-te com passos breves, com o violino numha mao e na outra o teu bolso de viagem, tam pitoresco. Qual é agora o meu estado de ánimo? Escreverei-che mais por extenso as próximas vezes (pedirei escrever umha carta dupla) e procurarei descrever-che os aspetos positivos da minha vida nestes messes (os aspetos negativos fôrom já esquecidos); umha vida interessantíssima, como podes imaginar, polos homens que tivem ao pé de mim e as cenas a que assistim. O meu estado de ánimo geral está marcado pola mais grande tranquilidade. Como podo resumi-lo? Lembras a viagem de Nansen ao Pólo? E lembras como se levou a cabo? Como 38 Em russo Serebriany bor, um lugar das aforas de Moscovo, onde G. passara um período de descanso no verao de 1922 e onde conheceu primeiro a Genia Schucht, também internada ali, e depois a Giulia, que fora visitar sua irmá e dar concertos para os doentes. 105 nom estou mui convencido de que o lembres, lembrarei-cho eu. Nansen, depois de estudar as correntes marinhas e aéreas do Oceano Árctico e tendo observado que nas praias de Gronelândia se encontravam árvores e resíduos que deviam de ser de origem asiática, pensou que poderia chegar ao Pólo, ou polo menos perto do Pólo, deixando que os gelos transportassem o seu barco. Assim, deixou-se aprisionar polos gelos e durante três anos e meio o seu barco apenas se moveu na medida em que se deslocavam, bem devagar, os gelos. O meu estado de ánimo pode comparar-se com o dos marinheiros de Nansen durante esta viagem fantástica, que sempre me impressionou pola sua conceiçom, verdadeiramente épica. Conseguim explicar-me? (como diriam os meus amigos sicilianos de Ustica). Nom cho poderia explicar de umha maneira mais breve e mais sintética. Portanto, nom te preocupes por esta parte da minha existência. Contudo, se quigeres que te lembre sempre com tenrura (estou a brincar, bem o sabes!), escreve-me com mais vagar, descrevendo-me a tua vida e a dos meninhos. Tudo me interessa, incluso os pormenores. E manda-me fotografias, cada tanto. Assim seguirei também com os olhos o desenvolvimento das crianças. E escreve-me sobre ti, muito. Viche algumha vez o senhor Bianco39? E viche aquele curioso modelo de africanista que umha vez me prometera um frito de rins de rinoceronte? Quem sabe se se lembra ainda de mim; se o vês, fala-lhe nesse frito e escreve-me as suas respostas; divertirei-me imensamente. Sabes que nom 39 Vincenzo Bianco (nascido em 1889), operário turinês, conheceu a G. nos anos de L’Ordine nuovo e fijo parte do grupo de «educaçom comunista», organizado polo próprio G. em 1920 em Turim. Emigrado a Moscovo em abril de 1923, manteve correspondência epistolar com G. e converteu-se em íntimo amigo da família Schucht. 106 fago outra cousa: pensar no passado e repassar todas as cenas e os episódios mais ridículos; isto ajuda-me a passar o tempo, algumha vez até rio à vontade, sem dar por isso. Querida, Tania anuncia-me outras cartas tuas; como as espero! Saúda todos os teus. Quero-te muito. Antonio Tania é mesmo umha ótima rapariga. Por isso a figem sofrer tanto. • (Carta 18) 25 de abril de 1927 Queridíssima mae, recebim a tua carta hoje mesmo, que che agradeço muito. Estou mui contente polas boas notícias que me dás, nomeadamente sobre Carlo. Nom sabia quais eram as suas condiçons no trabalho e na vida. Acho que Carlo é um ótimo rapaz, apesar de algumha falcatruada sua do passado, e acho também que é mais sólido nos negócios do que o eram (e talvez o sejam ainda) tanto Nannaro quanto Mario, que eram dados a ver ganhos fabulosos e a construir castelos no ar por qualquer pequena cousa. Ai de mim! todos na nossa casa (com a minha única exce- çom) acreditaram ter umha especial aptitude para os negócios e eu nom quereria que todos tivessem umha experiência como aquela famosa do «galinheiro»; lembras? E Carlo, lembra? Seria preciso lembrar-lha como umha humilhaçom perpétua para os Gramsci que queiram dedicar-se aos negócios. Eu hei de lembrá-la sempre, também porque aquelas galinhas, que 107 nom punham nunca, me picárom e estragárom três ou quatro romances de Carolina Invernizio (ainda bom é!)40. A minha vida decorre sempre igual. Leio, como, durmo e penso. Nom podo fazer outra cousa. Tu, contudo, nom deves pensar tudo quanto pensas e sobretudo nom deves iludir-te. Nom porque nom esteja seguríssimo de que hei voltar a ver-te e a fazer que conheças os meus filhos (receberás a fotografia de Delio, como che anunciei; mas nom che entregara já Carlo umha no 1925? Quando virá Carlo a Roma? E Chicchinu Mameli41 deu-che um escudo de prata que lhe enviara a Mea para que figesse umha colher de café? E umha tabaqueira de madeira especial para ti? (Esqueço sempre perguntar-che estas cousas), mas também porque tenho a certeza total de que serei condenado, e quem sabe a quantos anos. Deves entender que isto nom tem nada a ver, em absoluto, nem com a minha integridade, nem com a minha consciência, nem com a minha inocência ou culpabilidade. É algo que se chama Política, com a qual todas estas belíssimas cousas nom tenhem nada a ver. Sabes o que se fai com as crianças que mijam na cama, nom é? Ameaçase com queimá-las com umha estopa ardendo no estremo da forquilha. Pois bem: imagina que na Itália há umha criança mui gorda, que ameaça continuamente com mijar na cama desta grande mae produtora de cereais e de heróis; eu e algum outro somos a estopa ardendo (ou o farrapo) que se ensina para ameaçar ao impertinente e impedir que ensuje os imaculados lençóis. Visto que as cousas som assim, nom é preciso nem alarmar-se, nem iludir-se; é preciso apenas esperar com grande paciência e resignaçom. Portanto, força, ainda és forte 40 Carolina Invernizio (1851-1916), conhecidíssima autora de romances por entregas, como La sepolta viva, umha das mais famosas. 41 Francesco Mameli, conhecido da família Gramsci. 108 e jovem: havemos de ver-nos novamente. Entretanto, escreveme e fai que me escrevam os demais: manda-me muitas notícias de Ghilarza, de Abbasanta, de Boroneddu, de Tadasuni e de Oristano. Tia Antioga Putzulu, vive ainda? E quem é o podestà?42 Felle Tariggia, acho. E Nassi que fai? E os tios de Oristano vivem ainda? Sabe tio Serafino43 que chamei Delio a meu filho? E o hospitalinho rematárom-no? E as casas populares em Careddu, continuárom-nas? Vês quantas cousas quero saber? E fala-se, como penso, em unir Ghilarza a Abbasanta? E sem que os abbasanteses se levantem em armas? E a bacia do Tirso serve finalmente para algo? Escreve-me, escreve-me e manda-me as fotografias, nomeadamente as das crianças. Beijos para todos e muitos, muitos para ti. Nino E Grazietta por que nom me escreve nem umha linha? • 42 Nome com reminiscências medievais que recebia o Presidente da Cámara municipal durante a época fascista. Semelhante ao nosso «regedor»[N. do T.]. 43 Serafino Delogu, primo da mae de G. Proprietário de umha farmácia em Oristano, ajudou e cuidou a G. quando era um rapaz. Anos mais tarde, G. deu aulas a um dos seus filhos, Delio. (ver a carta 24). 109 (Carta 19) 25 de abril de 1927 Queridíssima Tania, recebim a tua carta do 12 e propugem-me fria e cinicamente fazer-te raivar. Sabes que és umha grande presunçosa? Querocho demonstrar de maneira objetiva e divirto-me já a imaginar a tua cólera (nom te amoles, porém; isso desgostariame). Que a carta que me enviache a Ustica estava cheia de erros, é verdade; mas nom se te deve responsabilizar por isso. É impossível imaginar a vida de Ustica, o ambiente de Ustica, porque é absolutamente excecional e está fora de toda experiência normal de convivência humana. Poderias imaginar cousas como esta?; escuita: cheguei a Ustica no dia 7 de dezembro, após oito dias de atraso na chegada do barco e após quatro travessias sem sucesso. Era o quinto desterrado político che chegava. Logo me avisárom de que me aprovisionasse de cigarros, pois as reservas estavam para acabar-se; fum ao tabaqueiro e pedim-lhe dez pacotes de macedónia (dezasseis liras), pondo sobre o balcom umha nota de cinquenta liras. A vendedora (umha mulher jovem, de aparência absolutamente normal) surpreendeu-se pola a minha petiçom, figem que a repetisse, tomou dez pacotes, abriu-nos, começou a contar os cigarros um a um, perdeu a conta, recomeçou, apanhou um fólio, fijo longas contas a lápis, interrompeu-nas, apanhou as cinquenta liras, observou-nas por toda a parte; finalmente perguntou-me quem era. Sabendo que era um desterrado político, deu-me os cigarros e devolveu-me as cinquenta liras, dizendo-me que poderia pagar-lhe depois de ter trocado a nota. O mesmo sucesso repetiu-se noutro lugar e esta é a explicaçom: em Ustica existe unicamente umha economia do peso; vende-se por pesos e nunca se gastam mais de cin- 110 quenta cêntimos. A unidade económica de Ustica é o preso, que recebe quatro liras por dia, duas das quais estám já empenhadas ao usurário ou ao vendedor de vinho, alimentando-se com as outras duas, comprando trezentas gramas de massa e botando-lhe como condimento um peso de pimenta moída. Os cigarros vendem-se um de cada vez; um macedónia custa dezasseis cêntimos, isto é, três pesos e um cêntimo; o preso que compra um macedónia por dia, deixa um peso em depó- sito e dele desconta um cêntimo por dia durante cinco dias. Para calcular o preço de cem macedónias, era pois preciso fazer cem vezes o cálculo dos dezasseis cêntimos (três pesos e um cêntimo) e ninguém pode negar que este é um cálculo razoavelmente difícil e complexo. E estava a tabaqueira, isto é, umha das comerciantes mais importantes da ilha. Pois bem: a psicologia dominante em toda a ilha é a psicologia que teria como base a economia do peso, a economia que apenas conhece a soma e a resta das unidades simples, a economia sem a tábua pitagórica. Escuita estoutra (e falo-che apenas de factos que me acontecêrom a mim pessoalmente; e falo-che dos factos que julgo nom ham de ser objeto de censura): fum chamado ao escritório polo empregado encarregado da revisom da recepçom do correio; entregárom-me umha carta, dirigida a mim, e pedírom-me que desse explicaçons sobre o seu conteúdo. Um amigo escrevia-me desde Milám, oferecendo-me um aparelho radiofónico, pedindo-me os dados técnicos para comprá-lo, polo menos com um alcance de Ustica a Roma. A verdade é que nom entendia a pergunta que me faziam no escritório e dixem de que se tratava; acharam que eu queria falar com Roma e negárom-me a licença para que me enviassem o aparelho. Mais tarde, o podestà chamou-me pola sua conta e dixo-me que o Concelho compraria o aparelho por própria iniciativa, e por isso nom insistim; o podestà era fa- 111 vorável a que se me concedesse a licença, porque estivera em Palermo e vira que com o aparelho radiofónico nom é possível comunicar-se. Poderias ter imaginado todo isto? Nom. Portanto, na minha observaçom nom havia nem umha sombra sequer de malícia ao teu respeito. Nom se pode pedir a alguém que imagine cousas novas; porém, o que se pode pedir (digo-o assim, por dizer) é exercitar a fantasia, para completar a realidade vivida com os elementos já conhecidos. Eis onde quero golpear-te e fazer-te raivar. Tu, como todas as mulheres em geral, tés muita imaginaçom e pouca fantasia e além disso, a imaginaçom em ti (como nas mulheres em geral) trabalha numha única direçom, naquela que eu chamaria (já te vejo a saltar)... protetora dos animais, vegetariana, de enfermeira: as mulheres som líricas (por elevar-nos um pouco), mas nom som dramáticas. Imaginam a vida dos demais (também dos filhos) do exclusivo ponto de vista da dor animal, mas nom sabem recriar com a fantasia a vida toda dos demais, no seu conjunto, em todos os seus aspetos. (Lembra que eu constato, nom julgo, nem ouso tirar consequências para o futuro; descrevo aquilo que existe hoje). Eis aonde queria chegar. Tu sabes que estou aqui, em prisom, num espaço limitado, onde me «devem» faltar tantas cousas; pensas na casa de banho, nos insetos, na roupa branca, etc. Se eu che escrevesse que me fai falta um dentífrico especial, por exemplo, com certeza serias capaz de correr de cima para abaixo por Roma, de saltares o jantar e a cena, de apanhares febre; estou certo disso. Escreves anunciando-me umha carta de Giulia; mais tarde voltas escrever-me, anunciando-me outra; depois recebo umha carta tua (e aprecio muito as tuas cartas), mas nom recibo as cartas de Giulia e ainda nom as recebim. Pois bem, nom podes fazer-te bem umha ideia da minha existência aqui na cadeia. Nom imaginas como eu, recebendo o anúncio, espero 112 cada dia e cada dia tenho umha desilusom, e isso repercute em todos os minutos de todas as horas de todas as jornadas; como eu leio e a cada momento abandono a leitura e me ponho a passear de cima para abaixo e penso e volto pensar e cismo e digo sem parar: Ai, esta Tania, esta Tania! Mas nom deves enfadar-te demasiado, sabe-lo, e também nom deves sentir demasiado desgosto (um pouquinho, sim, contudo; assim envias aginha as cartas, sem anunciá-las antes e sem fazerme pensar sempre que se perdêrom). Viche quantas voltas dei para dizer cousa tam simples? E quantos contos che contei? Som ruim, mesmo ruim. Mas como nom percebes que eu muitas vezes quero brincar e me respondes tam séria? Sabes quanto me rim quando me respondeche, totalmente séria, a propósito das fotografias que levei à cela? O mesmo quando confundiche os dous santo antónios; também estava a brincar. Umha outra cousa que nom entendeche. Tu, precisamente tu (como pudeche esquecê-lo?) me escreveras que nom devia pensar (visto que nom recebia as tuas cartas) que me quigesses menos ou que me tivesses esquecido. E eu respondim que se tivesse pensado isso, nom che teria escrito mais, como figem algumha vez no passado, nom já porque eu tenha sempre «necessidade de ser amado, cuidado, etc. etc.» (ó, psicologia de... sociedade protetora dos animais!), mas sim porque odeio todo quanto é convencional e que cheira às rotinas dos escritórios. Eu nom som um angustiado que deva ser consolado; nunca me converterei nisso. Mesmo antes de que me enviassem para a cadeia, conhecia o isolamento e sabia encontrá-lo mesmo no meio das multitudes. Nom é isso, nom é o que pensache. Na verdade, é justamente o contrário. Umha carta tua enche-me bastantes jornadas. Se pudesses ver-me quando recebo umha carta, certamente havias de escrever umha por dia (mas isso seria mau, aliás). Mas já chega de todo isto. 113 Entretanto, nesta semana nom podo escrever para Giulia. Sabes? O teu pacote chegou, e vim as cousas tam bonitas que me enviache: porém, só me dérom o chocolate. Nom se exclui, contudo, que também me entreguem o resto: é preciso fazer umha petiçom, que já está em andamento. O chocolate é ótimo: como-o em pedazinhos, por causa dos dentes (eis umha cousa que che interessa: dérom-me o chocolate, mas nom o papel de cores do envoltório, precisamente porque se pode utilizar para tingir: contudo, a bola tem umha cor natural de papelom, mui útil agora que está completamente enxuita). O endereço de minha mae é este: Peppina Gramsci, Ghilarza (Cagliari); escrevo-lhe hoje mesmo anunciando-lhe a fotografia. Receberás (polo que me asseguram) um pacote de uva de Pantelleria para Delio e Giuliano; verás que uva maravilhosa; nada a ver com a uva grega! Deixo-che que comas umhas poucas, para que o comproves. Giulia estará mui contenta e Delio quererá comê-la todo depressa. Asseguro-che que esta uva me surpreendeu polo arrecendo, o sabor e a carnosidade da sua polpa seca. Querida Tania, nom te azougues demasiado; quero-te muito, muito, e desesperaria-me bastante magoar-te de maneira demasiado intensa. Um abraço Antonio • (Carta 20) 23 de maio de 1927 Queridíssima Tania, recebim na semana passada um postal teu e mais umha carta, além da carta de Giulia. Quero tranquilizar-te no que respeita à minha saúde: estou bastante bem e falo a sério. De facto, nesta última semana como com umha responsabilidade que 114 me surpreende a mim mesmo: conseguim que me dessem quase que toda a comida como eu gosto e creio que até engordei. Aliás, desde há algum tempo dedico um pouco de tempo, tanto de manhá como de tarde, à ginástica; ginástica de quarto, que nom creio que seja mui racional, mas que me presta muitíssimo igualmente ou assim me parece. Fago assim: procuro fazer movimentos que impulsem todas as articulaçons e todos os músculos, em ordem e procurando aumentar cada semana em algumha unidade o número de movimentos; que isto é útil demonstra-se, para mim, em que nos primeiros dias me sentia todo dorido e só podia fazer certos movimentos pouquíssimas vezes, enquanto agora já conseguim triplicar o número de movimentos sem experimentar nengumha moléstia. Acho que esta inovaçom me prestou também psicologicamente, distraindo-me principalmente das leituras demasiado aborrecidas e feitas apenas para matar o tempo. Também nom deves crer que estude a mais. Um autêntico e adequado estudo acho que é impossível para mim, por muitas razons, nom apenas psicológicas, mas também técnicas; é mui difícil abandonar-me completamente a um tema ou a umha matéria e aprofundar somente nela, precisamente como se fai quando se estuda de verdade, para captar todas as relaçons possíveis e uni-las harmonicamente. Se calhar começa a acontecer-me algo nesse sentido no que di respeito do estudo das línguas, que procuro fazer de maneira sistemática, quer dizer, sem descuidar nengum elemento gramatical, como nom figera até agora, já que me contentava com saber o suficiente para falar, e nomeadamente para ler. Por isso nom che escrevim até agora que me enviasses nengum dicionário: o dicionário alemám de Kohler, que me enviache a Ustica, perdêrom-no os meus amigos de lá; escreverei-che que me envies o outro dicionário, o Langescheid, quando tiver estudado toda a gra- 115 mática; escreverei entom que me envies também os Gespräche de Goethe com Eckermann, para fazer análises da sua sintaxe e estilo, e nom apenas para ler; neste momento leio os contos dos irmaos Grimm, que som mui básicos. Estou mesmo decidido a estudar as línguas de que me ocupo de maneira predominante; quero retomar de maneira sistemática, após o alemám e o russo, o inglês, o espanhol e o português, que estudara pouco e mal em anos passados; para além do romeno, que estudara na universidade apenas na sua parte neolatina e que agora penso que podo estudar completamente, quer dizer, também com a parte eslava do seu dicionário (que de resto é mais de 50% do vocabulário romeno). Como vês, todo isto demonstra que estou completamente tranquilo, também no aspeto psicológico; de facto, nom sofro mais dos nervos, nem de acessos de cólera surda, como nos primeiros tempos; aclimatei-me e o tempo passa bastante depressa; penso em semanas, nom em dias, e a segunda-feira é o ponto de referência, porque escrevo e fago a barba, operaçons eminentemente rotineiras. Quero fazer-che um catálogo da minha biblioteca permanente, isto é, dos livros da minha propriedade, que manejo continuamente e que tento estudar. Vejamos. O Corso di Scienza delle Finanze da Einaudi, eis um sólido livro para digerir de forma sistemática. Sobre finanças tenho tambén Gli ordinamenti finanziari italiani, coletánea de palestras pronunciadas na Universidade de Roma por técnicos da administra- çom estatal; ótimo livro e de grande interesse. Umha Storia dell’Inflazione, escrita por Lewinsohn, mui interessante, ainda que de tipo jornalístico. Um livro sobre a Stabilizzazione monetaria nel Belgio escrito polo ministro Frank. De economia nom tenho nengum texto: tinha em Ustica aquele tam bom de Marshall, se bem que os amigos ficárom com ele. Porém, 116 tenho as «Prospettive economiche» de Mortara para 1927; a «Inchiesta Agraria» de Stefano Jacini; o livro de Ford Oggi e domani, que me diverte bastante, porque Ford, embora seja um grande industrial, parece-me bastante cómico como teó- rico; o livro de Prato sobre a estrutura económica do Piemonte e de Turim e um fascículo dos «Annali di Economia» com umha pesquisa mui diligente sobre a estrutura económica da regiom de Vercelli (zona arroceira italiana) e umha série de conferências sobre a situaçom económica inglesa (há também umha conferência de Loria). De história tenho pouquíssimo, e o mesmo no caso da literatura: um livro de Gioachino Volpe sobre os últimos cinquenta anos de história italiana, embora atual, de caráter principalmente polémico, La storia della lett. italiana e os Saggi critici de De Sanctis. Aqueles que tinha em Ustica tivem que deixar-lhos aos amigos de lá, que se encontravam também em dificuldades. Quigem-che escrever isto tudo porque acho que é a melhor maneira de que tanto tu quanto Giulia vos fagades umha ideia, polo menos aproximada, da minha vida e do curso ordinário dos meus pensamentos. De resto, nom devedes pensar que esteja completamente só e isolado; todos os dias, de umha maneira ou de outra, há algum movimento. De manhá tenho o passeio; quando me toca umha boa posiçom no pátio pequeno, observo os rostos dos que vam e dos que venhem ocupar os outros pátios pequenos. Depois vendem os jornais permitidos a todos os presos. De volta para a cela, trazemme os jornais políticos que me permitem ler; depois fago a compra, mais tarde trazem a compra feita o dia anterior, a seguir trazem o almorço, etc., etc. Em resumo, vem-se continuamente novos rostos, cada um dos quais esconde umha personalidade que adivinhar. De resto, poderia, renunciando à leitura dos jornais políticos, estar na companhia de outros 117 presos durante quatro ou cinco horas por dia. Pensei-no um pouco, mas logo me decidim a estar só, mantendo a leitura dos jornais; umha companhia ocasional divertiria-me durante alguns dias, se calhar durante umha semana, mas depois, com toda a probabilidade, nom conseguiria substituir a leitura dos jornais. O que achades? Ou é que a companhia, em si e por si, vos parece um elemento psicológico que deva apreciar mais? Tania, como doutora tu deves dar-me um conselho, mesmo de caráter técnico, porque é possível que eu nom seja capaz de julgar com a objetividade se calhar necessária. Esta é, pois, a estrutura geral da minha vida e dos meus pensamentos. Nom quero falar dos meus pensamentos dirigidos a vós todos e às crianças: esta parte devedes imaginá-la, e penso que a sentides. Querida Tania, no teu postal falas-me outra vez da tua chegada a Milám e da possibilidade de que nos vejamos na conversa. Será verdade desta vez? Sabes que já vam mais de seis messes sem ver nengum familiar? Nesta ocasiom esperote a sério. Abraços. Antonio